sábado, 26 de maio de 2012

CONTO FANTÁSTICO

     imagem:  www.desafiosdosescritores.com.br


   Lápides são frias...

Elas exibem sua frieza nas carreiras de túmulos de pedra ao lado da capela funerária abandonada, por trás das portas de ferro trancadas a cadeado.
            Sob a brisa fria que sopra para dentro e ainda, sob o sol forte ou sob a chuva tépida, ainda assim, são sempre frias e resistem ao sabor do tempo naquele cemitério romeno. Sempre estiveram ali, por séculos, imóveis, indiferentes a tudo, a qualquer som, sempre alheias aos olhares dos que passam, sejam apressados ou contemplativos, por entre os túmulos seculares.
            Todavia, sob os palmos de terra recoberta pelo mármore frio e inerte, basta apenas um minuto. Ou quem sabe, um átimo de segundo. Um tempo fora do tempo em algum lugar de Bucareste. Isto basta para que uma vontade se anime diante da perspectiva de vencer a  imobilidade sepulcral. 

          Um morto que deseja ser diferente, que sente várias fomes e um ânimo que faz esquecer os vermes, um desejo de romper a terra, os túmulos. Um corpo que recusa o abraço protetor do mármore e quer sair sob o temporal que despenca naquele momento, fazendo soar os sinos no pináculo da capela abandonada.
            Os raios clareiam a noite e ainda que a morte esteja mais presente que a vida nesta pequena fração de tempo, em cada relampejo que atravessa as rachaduras da lápide, aquelas carnes podres sentem irradiar sobre si uma fagulha de vida.
            Os olhos, até há pouco sem brilho algum, agora se tornam afogueados e avermelham-se como o sangue que falta ao corpo e o torna mais sedento. Pouco a pouco os sentidos começam a se aguçar e ele começa a ouvir os ruídos de longe. Os olhos vão se adaptando à escassez da luz. Seu olfato percebe odores a centenas de metros de distância.
             Mas o restante do corpo ainda custa um pouco a obedecer. Esforça-se a níveis quase sobre-humanos na tentativa de mover um único dedo da mão. Sente estremecerem as costas rígidas sobre o piso de cimento. A língua espessa e áspera dardeja timidamente em busca da saliva pastosa. Os pensamentos, estes sim, se movem numa ânsia explosiva. Ele não será como os outros. Não permanecerá mais ali, enterrado pela eternidade, cadáver concretado, coberto por mármore frio, sem vontade própria.
            — Huuummm... Aaahhhh! — Geme e suspira, trêmulo e tomado por uma emoção desmesurada. Sente-se exultante de orgulho só por  poder se mostrar àqueles que sempre negaram qualquer possibilidade e que agora o veriam... ressuscitado.
            Sente as forças se restaurando e com alguns murros despedaça em múltiplos fragmentos a pedra que o cobria. Levanta-se e olha, de esguelha, todas as outras lápides, inertes, como sempre estiveram, durante séculos. Algumas almas mais curiosas espiam para fora, atônitas assim que percebem sua recente mobilidade, mesmo que ainda frágil e insegura. Quase gritam para que ele não se exceda, para que fique ali e se mantenha inerte sob o túmulo, na mesma posição de sempre. 
            
       “Tolas!”  ele pensa, amargurado. — Tolas e acomodadas! — ele resmunga. Estala as vértebras do pescoço, faz um movimento de rotação com os ombros, sente os músculos ganharem vida.
                 — Ha-ha Ri para que os outros o ouçam. — Ha-ha-ha Ri o seu riso de escárnio pelos que ficam. Gostaria de dar uma resposta malcriada, mas logo seu riso torna-se um gemido. — Ha-ha-haaaaaaaaaa… Nenhuma palavra sai mais.

       As outras almas voltam-se indecisas para o fundo de suas lápides e ele dá o primeiro passo. E segue, com outros mais, lentos, pesados, silenciosos. O corpo, ainda decomposto, se movimenta. Precisa sair dali em definitivo e ganhar as ruas da cidade que ainda dorme. Precisa encontrar gente. A fome que está sentindo parece-lhe insaciável. Vira-se para trás pela última vez e percebe que outros já o seguem.