CONTOS FANTÁSTICOS

            Lápides são frias...

Elas exibem sua frieza nas carreiras de túmulos de pedra ao lado da capela funerária abandonada, por trás das portas de ferro trancadas a cadeado.
            Sob a brisa fria que sopra para dentro e ainda, sob o sol forte ou sob a chuva tépida, ainda assim, são sempre frias e resistem ao sabor do tempo naquele cemitério romeno. Sempre estiveram ali, por séculos, imóveis, indiferentes a tudo, a qualquer som, sempre alheias aos olhares dos que passam, sejam apressados ou contemplativos, por entre os túmulos seculares.
            Todavia, sob os palmos de terra recoberta pelo mármore frio e inerte, basta apenas um minuto. Ou quem sabe, um átimo de segundo. Um tempo fora do tempo em algum lugar de Bucareste. Isto basta para que uma vontade se anime diante da perspectiva de vencer a  imobilidade sepulcral. 


          Um morto que deseja ser diferente, que sente várias fomes e um ânimo que faz esquecer os vermes, um desejo de romper a terra, os túmulos. Um corpo que recusa o abraço protetor do mármore e quer sair sob o temporal que despenca naquele momento, fazendo soar os sinos no pináculo da capela abandonada.
            Os raios clareiam a noite e ainda que a morte esteja mais presente que a vida nesta pequena fração de tempo, em cada relampejo que atravessa as rachaduras da lápide, aquelas carnes podres sentem irradiar sobre si uma fagulha de vida.
            Os olhos, até há pouco sem brilho algum, agora se tornam afogueados e avermelham-se como o sangue que falta ao corpo e o torna mais sedento. Pouco a pouco os sentidos começam a se aguçar e ele começa a ouvir os ruídos de longe. Os olhos vão se adaptando à escassez da luz. Seu olfato percebe odores a centenas de metros de distância.
             Mas o restante do corpo ainda custa um pouco a obedecer. Esforça-se a níveis quase sobre-humanos na tentativa de mover um único dedo da mão. Sente estremecerem as costas rígidas sobre o piso de cimento. A língua espessa e áspera dardeja timidamente em busca da saliva pastosa. Os pensamentos, estes sim, se movem numa ânsia explosiva. Ele não será como os outros. Não permanecerá mais ali, enterrado pela eternidade, cadáver concretado, coberto por mármore frio, sem vontade própria.
            — Huuummm... Aaahhhh! — Geme e suspira, trêmulo e tomado por uma emoção desmesurada. Sente-se exultante de orgulho só por  poder se mostrar àqueles que sempre negaram qualquer possibilidade e que agora o veriam... ressuscitado.
            Sente as forças se restaurando e com alguns murros despedaça em múltiplos fragmentos a pedra que o cobria. Levanta-se e olha, de esguelha, todas as outras lápides, inertes, como sempre estiveram, durante séculos. Algumas almas mais curiosas espiam para fora, atônitas assim que percebem sua recente mobilidade, mesmo que ainda frágil e insegura. Quase gritam para que ele não se exceda, para que fique ali e se mantenha inerte sob o túmulo, na mesma posição de sempre. 
            
       “Tolas!”  ele pensa, amargurado. — Tolas e acomodadas! — ele resmunga. Estala as vértebras do pescoço, faz um movimento de rotação com os ombros, sente os músculos ganharem vida.
                 — Ha-ha Ri para que os outros o ouçam. — Ha-ha-ha Ri o seu riso de escárnio pelos que ficam. Gostaria de dar uma resposta malcriada, mas logo seu riso torna-se um gemido. — Ha-ha-haaaaaaaaaa… Nenhuma palavra sai mais.

       As outras almas voltam-se indecisas para o fundo de suas lápides e ele dá o primeiro passo. E segue, com outros mais, lentos, pesados, silenciosos. O corpo, ainda decomposto, se movimenta. Precisa sair dali em definitivo e ganhar as ruas da cidade que ainda dorme. Precisa encontrar gente. A fome que está sentindo parece-lhe insaciável. Vira-se para trás pela última vez e percebe que outros já o seguem.




Iorghus e Ruxandra
           
Apesar de viver entre os humanos, não nasci de mãe humana.  Fui gerado por algum animal, é isso que dizem meus instintos. Meus impulsos naturais levam-me todas as noites para as profundezas da imensa selva que circunda a base dos Montes Cárpatos. Chamo-me Iorghus. Busco minhas origens incansavelmente. Preciso descobrir se todas as formas do meu comportamento  foram adquiridas durante a vida ou herdadas de algum monstro destruidor. Se é que pode ter vida um ser tão repelente como eu.            
Se soubessem o que há por trás da máscara que ostento durante os dias, estremeceriam de espanto. Não é apenas um rosto, um simples molde que troco a cada cadáver que me atraia. Trata-se da face do medo, algo sinistro, medonho, transfigurado por um ódio indisfarçável. Apenas os olhos são meus. Estes, não enganam ninguém, por trás da falsa aparência.            
“Abra os olhos para o mundo” — Foi o que me disseram pela primeira vez. Na segunda tentativa foram palavras carregadas de menosprezo e depois continuaram as risadas e humilhações.E eu me encolhendo, me escondendo. Até que todos desapareceram.  Em algum canto fui esquecido. E agora este monstro, este louco de quem o mundo se esqueceu está de volta. Descubro que não nasceu. Apenas renasceu na selva escura e está dentro de mim, tomando conta de minhas vontades. Eu, que sou parte deste mundo, sou alguém que não pode mais simplesmente ser esquecido. E nem quero.  Preciso das pessoas porque elas são capazes de sentir dor e eu me tornei alguém que vive da dor e do sofrimento. Quero a proximidade, embora elas implorem para que eu não me apresente como realmente sou. Choram e correm para que eu não possa tê-las. Mas eu as tenho e as vejo todas as manhãs quando miro o espelho depois de mais uma noite proveitosa.            
Olho os rostos, olho o medo, a inocência e o pecado. Tudo isso transparece ainda mais tarde, junto com a névoa do anoitecer. Quando me mantenho à espreita, pressentindo a presença de outros seres da noite se aproximando com a sombra e com o vento. Seus risos para mim são perniciosos e maléficos e ecoam por trás das esquinas, perseguindo alguém e sinto o cheiro de morte se espalhando no ar e ouço gritos de desespero. Preciso identificar quem os provocou e descubro que não fui eu, foi sim, o monstro frio em que inevitavelmente me transformei.  Os outros seres da noite também me descobrem e me observam e eu vou ao seu encontro. Os olhos, agora, cheios de prazer pela dor que causei. O dia está prestes a clarear então preciso seguir em direção à escuridão da selva. É lá que me protejo, permaneço por dias, anos, séculos, como um cavaleiro errante, sempre atrás de minhas origens, até retornar para ser novamente lembrado e buscar outra vez a proximidade. É dela que preciso para saciar a fome.  E a fome eu mato transformando medo em ódio na ânsia de descobrir o que tenho de buscar. E algo me diz que desta vez vai ser diferente. Algo enfim, mudou. Em mais uma noite à procura de alimento preparo as presas afiadas, direciono meus olhos bestiais, mas num instante meu coração se aquece. Ruxandra está ali, eu, vigilante, ela, distraída. Faço-lhe sentir minha presença e ela me encara com um olhar que emana energia. O simples beijo que lhe dou é fatal. Do beijo maldito restou a morte. Mas o que era suposição se confirma e nesse fim de mais uma vida, agora seremos dois. Dois seres transcendendo por séculos e milênios com um único propósito de  recriar-se em si mesmos buscando um novo recomeço.