CONTOS INFANTIS

ESTE CONTO FOI ESCOLHIDO COMO O MELHOR TEXTO NA CATEGORIA INFANTIL DO DESAFIO DOS ESCRITORES




       Só há um caminho a percorrer. Uma única viela que leva ao rio. As primeiras notas produzem um som doce e intenso que ecoa e se difunde nos ouvidos, primeiro distraídos, em seguida atentos. Os primeiros passos logo tomam ritmo de dança, seguindo outros passos que convidam: ─ Sempre em frente! Os olhos procuram aquela boca encantadora, que toca e aquelas mãos que seguram a flauta e se movem, com dedos ágeis em seus orifícios, produzindo melodias como um sopro divino.

       Os que observam, parecem não acreditar no que vêem. Um exército de ratos, em ritmo harmonioso, desce dos telhados, pelas paredes, sai debaixo dos porões, dos bueiros e das enormes pilhas de lixo. Seres humanos são tão descuidados!  Milhares de pernas e pezinhos marcham, deixando para trás restos de comida. O som da flauta faz sonhar com recompensas muito mais apetitosas. Cada nota desperta um desejo de mordiscar sabão cheiroso e papel branquinho. Desafia a roer madeiras caras e roupas de seda pertencentes a reis raivosos ou não; queijos enormes como a lua cheia, cereais madurinhos, maçãs e carne em fartura.

             É como se aquele som pertencesse a uma voz celestial que repete: ─ Devorem, nobres ratos! Degustem, roam! Está tudo ali, tudo de uma vez, café, almoço e jantar. Falta pouco, floresta adentro, apenas alguns passos mais.
       Mas no fim do caminho há o rio. Um espelho cristalino que se turva diante do turbilhão de ratos que não se detém às suas margens e mergulha aos montes. Um redemoinho os leva para o fundo. Para eles é o fim.
       Os que ficam, sorriem aliviados. Os ratos se foram. A cidade, antes infestada, conseguiu livrar-se da maior praga que já houve. As mãos aplaudem. Deixam de lado paus e pedras, antes sempre à mão. Não há mais ratos. Agora só haverá saúde, paz e felicidade. Podem dar-se as mãos e festejar. Por um momento apenas, esquecem as diferenças. Damas rendadas e senhores engravatados saem de suas casas para abraçar moradores de rua. Velhos e moços dançam juntos. Meninas engomadinhas brincam com meninos de joelhos arranhados. A festança é geral.
       O alívio é maior entre os senhores que governam a cidade. Acabaram-se as insinuações, os olhares desconfiados e as cobranças. Agora podem dizer:
       ─ Eu sabia! ─ Encastelados no alto das escadarias lançam olhares benevolentes para o povo que vem agradecer. ─ Não há de quê!  ─ Sentem-se eles os heróis. O verdadeiro se foi junto com os ratos. Logo mais será esquecido. Ao fecharem-se os portões não há como voltar.
       No entanto, os corações não estão tranquilos. Ao fim da festa, há um certo descontentamento, um breve lampejo de contrariedade. Hesitam um pouco, dão-se as costas. Está faltando alguma coisa. 


       Meses depois, finalmente o tocador de flauta consegue entrar. Um vulto esquelético, coberto por uma capa velha e amarrotada anda cabisbaixo pelas ruas. Ninguém reconhece nele o jovem elegante, de longa cabeleira dourada que veio negociar da outra vez. É anunciado com um nome qualquer, entra, olha, desveste-se da capa e se revela. Os senhores que governam a cidade nem o cumprimentam e ordenam que se retire.
       Lá fora ele caminha, não sente nada, não enxerga nada. Retira a flauta do bolso e toca, enquanto anda em direção aos portões. Do outro bolso salta um casal de ratos. Esconde-se numa velha bota largada na rua. É um bom lugar pra fazer um ninho. Os seres humanos são tão descuidados!
       Aquele som doce e intenso ecoa novamente pelo caminho. Mas agora soa diferente. É como se os anjos estivessem brincando, de verdade. Porque as crianças param de brincar. Largam seus brinquedos num canto, largam os livros sobre os bancos da escola e os lugares nas mesas do almoço ficam vazios. Os adultos não conseguem segurar. Meninos e meninas não resistem a um som assim. Enquanto escutam o som da flauta vão sentindo a magia. Tornam-se marujos, astronautas e acendem-se os sonhos adormecidos. Viajam para o País das Delícias Eternas. Será que alguém tentará impedir? Não há mais tempo. Já se foram. Passaram pela brecha do portão. Uma fenda convidativa aos olhos cintilantes.
       Depois de desaparecerem, muito além dos muros da cidade, ainda se ouvem as risadas e os passos alegres da marcha, acompanhados pelo som da música.
       Os que ficam garantem que nada mais poderia ser tão belo.




RICA VIDA SIMPLES


       ─ Hora de dormir, princesa! Você quer que o papai lhe conte uma história?
       ─ Hoje não precisa, papai.
       ─ Que novidade é essa? Você sempre pede uma história antes de dormir.
       ─ É que a história vai demorar muito, papai. E eu quero dormir logo. Veja, já estou fechando os olhinhos...Pronto!
       ─ Por que tanta pressa em dormir?
       ─ É que eu quero que a noite passe rápido. E que amanhã chegue logo. Pra chegar logo meu aniversário.
       ─ Seu aniversário? Não é amanhã...
       ─ Ora, paizinho! Você esqueceu que eu resolvi fazer aniversário a cada nova estação?
       ─ E quantos aninhos a minha princesinha vai fazer amanhã?
       ─ Não é quantos, papai. É qual... Amanhã é meu aniversário de Primavera. Boa noite, Papai!
       ─ Boa noite, filhinha, durma com os anjinhos!
       Encerrando o diálogo, Nati vira-se de costas para a porta do quarto e mantém os olhos apertados, torcendo para que o sono chegue logo. O sono vem e com ele, os sonhos.      
       Os sonhos trazem imagens de estações anteriores, cheias de aniversários festejados com as pessoas que ela amava, na pequena cidade que se transformava para a festa de cada estação.
A Natureza também fazia sua festa, para homenagear mais uma fase da vida da menina que crescia. Cada uma delas era vivida de maneira diferente.
       Os verões eram tempos de muita convivência. Nas horas de sol a pino, o trabalho ficava para depois, as pessoas se recolhiam para a sesta, em seus quartos frescos ou sentavam-se à sombra das árvores para fugir do calor. Momentos de maravilhosas conversas, risadas e jarras de refresco. Dias mais longos e brincadeiras adentrando as noites. As ervas do chão secavam e ficavam cor de palha assim como a pele e os cabelos da garota, que douravam com os raios de sol.
       Dias de sol sempre antecedem a chuva e logo as campinas verdejavam novamente. Na época das colheitas, os quintais se enchiam de alegria. Cantorias de pessoas, pássaros e cigarras misturavam-se aos zumbidos de grilos e gafanhotos, saindo de jardins e trigais. Nati, saltitante a perseguir borboletas, logo se debruçava para cheirar uma flor. Seguia com o dedinho a estradinha aberta pelas formigas, num labirinto que ela nunca conseguia descobrir onde iria terminar.
       Era só mais uma primavera que terminava. Mais um ciclo que se ia. Em outra época, outonos davam um sabor especial, ora adocicado como as amoras, ora azedo, de tangerinas ainda verdes, na pressa de prová-las. O outono era colorido e belo, com as folhas amarelando e caindo.
       Já bem fora do tempo das frutas e das flores, Nati observava a chuva que caia, primeiro fininha, depois fria. E, de repente, era um frio cortante que descia dos montes. As manhãs nasciam brancas de geada.  A noite escutava o assovio do vento. Era a hora da lareira acesa e das conversas ao pé do fogo. Outro dia amanhecia e tudo ficava cinza. Logo, era a neve que caia e tudo ficava branco. As crianças se embolavam no chão, deliciadas por aquele milagre de beleza infinita. Enchiam as mãos de neve, queriam guardá-la para depois, levar para casa, mas lá chegavam com as mãos geladas, molhadas e vazias. Era a beleza que se esvaia por entre os dedos, mas que ficava guardada na alma.
       São as imagens do sonho que se esvaem. Nati desperta quando mamãe, toda contente, entra no quarto de mansinho e abre as cortinas.
       ─ Hora de acordar, senhorita! ─ Mamãe se aproxima da cama e Nati já vai preparando o rostinho para ela beijar.
       ─ E o papai, já foi trabalhar?
       ─ Já foi, sim. Mas ele disse que volta para o almoço.
       ─ Meu almoço de aniversário, não é, mamãe?
       Atrás dela entram os irmãos, o vovô e a vovó, trazendo um embrulho enorme. Em meio a sorrisos e abraços, todos brincam com seu dia de aniversário. O presente é a linda Boneca de Pano feita, às escondidas, pela avó. Nati sorri, maravilhada pela doçura daquele momento.
       ─ Humm, essa boneca tem uma carinha misteriosa! Mas é tão linda!
       Abraça a boneca, como a mãe sempre abraçou a filha e pensa no seu pequeno mundo, junto com sua gente. Adora seus dias de aniversário, cada um deles tão diferente. De um jeito simples, fazem aprender coisas novas. Nati ainda não sabe que cada coisa aprendida vai formando, delicadamente, um imenso tapete verde, cor de palha, branco, dourado e cinza.

       
 

AVENTURA NA FLORESTA



            O Menino, cansado da fuga, estava deitado embaixo de uma árvore em meio à densa floresta. O Papagaio-Curica viu o Menino e foi chamar os outros.
            Quem atendeu ao chamado do Papagaio foi o Macaco-Barrigudo, o Guanaco-Solteirão e o Tatu-Galinha.
            Os quatro animais, muito curiosos, puseram-se a pesquisar.
            — Será que está vivo ou morto? Não é nada parecido com o que estamos acostumados a ver por estas bandas.
            Tatu-Galinha apalpou o corpo de menino e viu que tinha uma pele macia, nada de carapaça com a sua.
            — Não tem casca, não tem penas e não tem pelos. Mas que pele mais pelada! Nunca vi um bicho assim.
            Papagaio-Curica olhou a boca:
            — Vejam só! Esta boca não tem bico. E está cheia de dentes!
            Macaco-Barrigudo andava em círculos. Agarrou o dedão do pé do menino, ergueu um pouquinho, coçou a própria cabeça e falou muito sério:
            — Este bicho não tem rabo! Mas que bicho mais estranho! Sem rabo, sem asas, sem bico e com esta pele pelada...
            — E se isto não for um bicho? — disse o Guanaco-Solteirão, agora preocupado.  —Ele é tão misterioso!
            — Elementar, caros amigos! — disse o Tatu. — Veja, Macaco, tirando o seu rabo, ele não é tão diferente de você. É um filhote de gente!
            — Socorro! — Papagaio voou para o alto de um galho. — Gente é um bicho muito perigoso! Joga pedra no meu ninho, me vende, me prende!
            — Nem toda gente é perigosa, Papagaio! — Falou o Tatu. — Filhote de gente, eles chamam de criança. E este deve ser um Menino. Olhe, ainda é tão pequenino!
            — Vamos ver se ele está apenas dormindo... ou será que está morto? Vamos examinar. — Tatu-Galinha subiu no peito para ouvir o coração. O coração bateu tão forte, que jogou Tatu pra longe.
            Guanaco-Solteirão espichou o pescoço para baixo e dobrou os joelhos, encostando a face  no nariz do Menino, para ouvir a respiração.
            — Que legal! Está soprando um ventinho quente! — Mas o pelo do Guanaco fez cócegas no nariz do Menino.
            — Ah...tchim! — Guanaco caiu de costas, com as patas para o alto.
            — Se pode expirrar, então está vivo! — disseram os quatro. — Vamos acordá-lo pra que nos conte sua história e pra gente poder brincar com ele.
            Papagaio foi dando bicadinhas, Tatu deu mordidinhas, Macaco fez coceguinhas e Guanaco fazia um barulhão com a boca, imitando um Burro.
            Toda essa festa fez o Menino acordar. Ele se esticou todo, se espreguiçou, viu os quatro animais e, apesar de surpreso, não se assustou.
            Começou a contar sua história e por que veio parar ali.
            — Eu estou indo para a Terra de Colombo, buscar ajuda pra libertar minha Mamãe. Eu consegui fugir, mas ela está presa no Reino dos Farconians. Sabem o que são os Farconians? São uns monstros perigosos, que atacam pessoas e as levam para o meio da floresta. Eles mantêm as pessoas presas e são muito malvados.
            — Mas, e você conseguiu escapar deles? — perguntou o Papagaio.
            — Eu nasci dentro do Reino dos Farconians. Minha Mamãe estava me esperando quando a levaram para a floresta. A cada poucos dias levam a gente pra fazer marchas forçadas no meio do mato e foi durante uma dessas marchas que eu fugi. Eu estou muito cansado, mas prometi para minha Mamãe que ia buscar ajuda e que tiraria ela das mãos dos Monstros.
            — Você é um Menino tão pequeno e tão valente! — disse o Macaco, admirado.
            — Nós não sabemos o caminho para a Terra de Colombo, mas se você quer ir pra lá, vamos ajudar. — comprometeu-se o Guanaco, em nome dos demais.
            — Sim, a Mamãe disse que eu devo procurar o meu Papai, porque ele vai trazer uma máquina voadora, gigante e barulhenta que carrega pessoas e que se chama haa... hoooli... heeliicópiiitero.
            — Ah, ah, ah... Nem eu que falo tão bem, conseguiria pronunciar esta palavra! — Papagaio-Curica não conseguia parar de rir.
            Enfim, resolveram postar-se rumo a Terra de Colombo, onde o Menino conseguiria ajuda para libertar sua Mãe. Antes, porém, os quatro animais fizeram uma combinação de poupar o Menino de mais traumas do que ele já tivera até o momento. Resolveram fazer tudo parecer uma brincadeira, uma aventura que pudesse manter seu amiguinho livre dos perigos que pudessem surgir.
            Eles já imaginavam que os Monstros Farconians estavam bem próximos. Depois de descobrir a fuga do menino, o chefe dos Monstros mandou um grupo grande em sua perseguição.
            Os Monstros, sequer desconfiavam que logo teriam que enfrentar aqueles animais, seres da selva como eles, só que os quatro amigos estavam unidos com um propósito universal, de fazer o bem aos outros. Bem diferente dos Farconians, que só sabiam espalhar o terror.
            — Eu vou cavar tocas por baixo da terra, deixando camadas bem fininhas pra eles caírem nos buracos, quando por aqui passarem. — Assim fez o Tatu, quando sentiu a aproximação dos Monstros.
            Macaco-Barrigudo pendurou-se pelo rabo no galho da árvore mais alta.
            — Vocês se escondam atrás de algum arbusto, porque quando eles passarem por baixo desta árvore, vou saltar do meu galho e vou dar socos pra tudo quanto é lado.
            O Macaco-Barrigudo desloca-se com rapidez incrível e pode dar saltos espetaculares de uma árvore para outra. No chão, adota a posição bípede com a cauda voltada para cima. Os Monstros perseguidores não tiveram chance de defesa, fugindo dali apavorados, pensando que era um demônio furioso a lutar contra eles. Correram bastante e quando pensaram estar a salvo, ouviram uma voz poderosa e assustadora:
            — Vocês vão ver, seus bandidos! Eu vou pegar vocês! Vão virar picadinho! — Pensaram tratar-se de algum Monstro pior que eles, pois a voz era horrível. Mais uma vez, correram apavorados, sem imaginar que era apenas o Papagaio-Curica, imitando voz de gente.      Em meio à correria receberam cusparadas do Guanaco, com sua mira certeira, bem na cara deles, a gosma escorrendo, de cima abaixo.
            E foi assim que durante a longa jornada na floresta, o Menino viu os Monstros caindo nas brincadeiras montadas pelos quatro animais para pegá-los de surpresa, até não sobrar nenhum.
            Livres dos Monstros, os amigos iam montados na garupa macia do Guanaco, quando começaram a ouvir um barulho que foi se tornando ensurdecedor. Ao chegarem a uma clareira, quase nos limites da floresta, viram baixar a enorme máquina voadora que a Mamãe do Menino tinha falado tantas vezes. Então, correram ao encontro do Homem que descia do helicóptero e que também corria para eles e em seguida já apertava o menino em seus braços e o carregava no colo. Não foi necessária nenhuma apresentação.
            — Fui avisado que os Farconians fugiram, deixando tudo para trás. Não sei o que os fez agirem assim, mas deve ter sido algo muito poderoso. As pessoas foram libertadas e estão a caminho. Vamos ao encontro delas, buscar a Mamãe!
            O Menino apenas sorria, a cabeça encostada no peito do Pai, enquanto piscava para os amiguinhos animais. Todos sabiam que nada mais seria como antes de se conhecerem. Despediram-se com promessas de novos encontros e novas aventuras, sem perigos. A proteção e a diversão estavam garantidas.


O Portal de Cartagena


            
O quintal da casa foi invadido por uma forte ventania que vinha do norte, trazendo um cheiro de terra molhada pela chuva que despencava. De repente, o rugido de um trovão fez com que Beto e Juliano procurassem abrigo embaixo da bela e centenária árvore Typuana. Um raio rasgou o céu, aterrissando a poucos passos de onde estavam. O barulho do vento, misturado com o ranger dos trovões e o brilho dos relâmpagos, fez com que os pestinhas se mantivessem de olhos fechados, num silêncio profundo por alguns minutos. Para falar a verdade, estavam tomados pelo pânico. 
            Beto abriu os olhos no momento em que um novo raio iluminou o lugar.

            ─ Peguem suas armas! Vamos!
             ─ Verifiquem as escotilhas!
            ─ Em posição! Em posição! Estamos quase lá!

            De repente, estavam naquele estranho navio. Cutucou Juliano que também abriu os olhos, espantado com aquelas vozes.
            ─ Beto, onde estamos? ─ Juliano cochichou baixinho. Tinha medo de ser notado pela tripulação do navio.
            ─ Isto aqui está me parecendo uma embarcação pirata. Veja a bandeira no alto do mastro, com aquela caveira!
            ─ Embarcação pirata? Tu tá maluco hein, Beto? Piratas não existem mais, faz um tempão.
            ─ Sim! Eu lembro muito bem dos livros de piratas do vovô. Caracas! É o navio do Almirante Morgan! ─ bradou tão alto que acabou atraindo a atenção de dois corsários que passavam pelo convés.
            ─ Moleques, quem são vocês? O que fazem aqui, seus pestes? Vamos ter que levar vocês ao Almirante.
            Enquanto eram arrastados aos trancos, pelos dois piratas que se mostraram nada educados, Beto contou baixinho ao irmão a história que havia lido sobre o pirata Morgan:
            ─ No ataque a Veracruz, na costa do Oceano Pacífico, ele capturou todos os  defensores da cidade, demoliu o forte que eles haviam construído e se adonou de tudo de valioso que encontrou pela frente. Fez tantos prisioneiros e carregou tantas joias de ouro, prata e pedras preciosas, que o seu barco quase afundou, de tão pesado que ficou. O rei da Espanha mandou três fragatas cheias de canhões em sua perseguição por dias e noites, mas o corsário se esquivou dos ataques jogando toda a carga ao mar para que seu barco ficasse mais leve. Aproveitou um vento forte, içou as velas ao máximo e se escapou velozmente.
            Quando os dois se viram diante de uma figura assustadora, souberam que se tratava do temível corsário Almirante Morgan, um homem grandão com uma longa cabeleira, uma barba espessa e um olhar malévolo.      E agora, se encontrava ali diante deles, com aquele olhar ameaçador, vociferando palavras mais ameaçadoras ainda:
            ─ Vou puxar suas orelhas, seus moleques safados! Vou trancá-los no porão do navio! Vou jogá-los aos tubarões!
            Apesar da situação embaraçosa, os meninos não podiam deixar de se divertir com a indecisão do pirata.
            ─ Não! Por favor, tenha piedade, senhor pirata! Nós fazemos qualquer coisa, mas poupe as nossas vidas!
            ─ Qualquer coisa? Ah, é bom eu saber! Pois então, eu tenho uma condição! ─ Uma luz diabólica brilhou nos olhos do pirata. Ele quase havia se estropiado no evento de Veracruz, tinha saído danificado em sua reputação e finanças e, desta vez, nada poderia dar errado.
            ─ E qual é essa condição? ─ A voz dos dois meninos saiu tremida.
            ─ Vocês vão comigo, para Cartagena das Índias, vocês dois vão carregar os tesouros que conseguirmos arrecadar para o navio. Preparem-se, porque vai ser um trabalho pesado!
            ─ Mas, por que o senhor vai justo para Cartagena?
            ─ Porque lá poderemos fazer uma boa colheita. Depois que eu e meus homens assaltarmos a cidade, vou tomar conta de tudo e ainda vou pedir um elevado resgate.
            ─ Caracas! Isso é demais! E onde fica Cartagena? Em que época estamos agora?
            Todos os piratas presentes começaram a dar gargalhadas, mas o Almirante Morgan, tomado de uma calma surpreendente explicou:
            ─ Estamos no ano de 1612. Na última vez que passei por estas bandas, em direção às Indias, vi que Cartagena é um lugar fácil de ser invadido. Não há muralhas, nem fortalezas, nem pontes. Nós vamos aparecer às portas de Cartagena, sem aviso prévio, sem eles saberem de onde surgimos.
            Almirante Morgan abriu um velho mapa e começou a apontar com o dedo indicador os planos de invasão:
            ─ Vamos aportar aqui, em Playa Blanca, na Ilha Baru. Depois entraremos por aqui, em Boca Grande e tomaremos a cidade.
            Os demais piratas que o rodeavam lançavam olhares de cobiça para o ponto onde estava demarcado o nome de Cartagena. Seus risos desdentados e ávidos demonstravam uma fome que os dois meninos não puderam identificar se era por riquezas ou apenas por um naco de pão. Aqueles homens ferozes estavam por tempo demais sem ver a terra.
            As mesmas ordens foram repetidas:
            ─ Todos em posição! Peguem suas armas! Vamos seus molengas! Vamos invadir!
            Mal sabiam eles que os habitantes de Cartagena haviam se preparado e muito bem contra qualquer ataque. Por certo, o pirata Almirante Morgan estava desatualizado em suas informações sobre a cidade. Os dois garotos vindos do fututro decidiram que não o avisariam do fracasso que estava por vir.
            Na verdade, o povo de Cartagena aprendeu a odiar os piratas, considerando-os seus inimigos mortais. Além de ser um povo festeiro e divertido, que adorava dançar e promover jogos e torneios ao ar livre, todos passaram a defender suas riquezas com brio. Construíram uma muralha de mais de oito quilômetros com grossas paredes, mais resistentes que as de Veracruz ou de qualquer outra cidade das redondezas. Desta vez, nem os canhões dos piratas foram capazes de derrubar. Do alto dos fortes, os homens cartageneiros receberam os piratas a tiros de canhão, auxiliados por indígenas lançadores de flechas certeiras.
            Ao tentar invadir, o Almirante Morgan ficou espantado com a reação do povo da cidade. Cartagena havia se tornado uma fortaleza inexpugnável para deter os inimigos que chegavam sedentos pela riqueza local. Dominado pela surpresa, voltou ao seu navio tão cabisbaixo, com os homens que lhe restaram, que nem percebeu que a tempestade havia passado e que agora apenas um vento soprava forte. Foi se formando um pequeno mas poderoso redemoinho dentro do seu navio pirata. Ao chegar lá não encontrou mais os meninos.
            Depois disso, desapareceu no mar, se morreu, ninguém sabe. Beto e Juliano juram que ainda podem vê-lo, de seu quintal, em dias de tempestade, em pé sobre o velho navio, gritando ordens, a comandar seus homens.




De rolha em rolha
Aninha está com sono, mas quer aguentar até a mãe terminar de arrumar a cozinha, para vir dar-lhe o beijo de boa noite. Sentada no último degrau da escada, com os cotovelos fincados nos joelhos e as mãozinhas segurando o queixo, sente os olhos piscando. No instante seguinte, porém, algo chama a sua atenção e os olhos ficam arregalados pelo que espreitam lá embaixo, no chão da sala de jantar. Algumas tampinhas de garrafa e umas rolhas estão dando pulinhos embaixo da mesa, movimentando-se num animado diálogo.
— A cortiça, material de que sou feita, sai da casca de uma árvore chamada Sobreiro, comum em Portugal e na Espanha. De nove em nove anos toda a casca é retirada da árvore para a produção de rolhas.
— De nove em nove anos? — quem questiona é uma rolha sintética, dessas de garrafa de espumante. — Ah, mas esse longo período, aliado ao aumento na fabricação e consumo de vinhos faz com que você fique mais cara e escassa! A minha vantagem, além de ser mais barata, é que eu apresento um baixo índice de transmissão de oxigênio. Afinal, todos sabem que a troca de ar com o ambiente externo pode arruinar um bom vinho.
A esta altura, entre as pernas das cadeiras, os outros já começavam a se separar em grupinhos. Os “pró-sintética” defendiam que o vinho devia ser tratado como qualquer produto alimentício e ficavam argumentando que a contaminação da rolha era algo inaceitável. Os “pró-cortiça” se encarregavam de enaltecer as virtudes da rolha natural pela sua elasticidade, resistência e durabilidade. De cima da mesa, uma garrafa pela metade começa um discurso contra a substituição da rolha natural afirmando que não se deve ter como premissa os lucros e sim a qualidade.
Aninha desce a escada, ajoelha-se no chão e começa a recolher as rolhas que, quando a vêem, calam-se. No quarto, as deposita numa caixinha de papelão, onde estão guardadas outras tampinhas e rolhas, de rosca, de cortiça, sintéticas e até de vidro.
A mãe entra no quarto e vê Aninha contemplando o conteúdo da caixa com um sorriso terno. — Filhinha, o que você está colecionando?
A garotinha fecha a caixa e agora encara a mãe com um olhar compenetrado. — É a minha coleção do tempo.
    Coleção do tempo?
    Sim! Aqui eu guardo o Presente, Passado e Futuro....

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