sábado, 5 de janeiro de 2013

Talento para o mal


http://ideiasdacaca.blogspot.com.br/2011/07/o-imperador-romano-nero.html
Veste-se para o papel que lhe foi dado e atua como um fantoche. A determinação de uma mãe ambiciosa o fez imperador e para isso foi preciso cruzar todos os limites.   Junto com o poder alcança o palco que sempre quis. Viciado pelos bajuladores, seu intuito maior é manter a atenção das multidões, exigindo o amor contínuo dos seus súditos. Quando começa a decair em prestígio, vem o ato extremo. Um incêndio destrutivo capaz de fazer arder metade de Roma, enquanto toca sua lira e rege seu próprio concerto. E chora seu drama diante de uma plateia petrificada de horror. Este é o momento de maior brilho para o grande César, o que faz aumentar ainda mais sua fome de crueldades. Dali a pouco, encastelado em sua tirania, ele rirá sozinho, pela grande comédia que irá encenar. Ao culpar os cristãos pelo incêndio, reserva-lhes os castigos mais atrozes, assim como atinge com traços de crueldade também aqueles que lhe são próximos. Tudo envolto em altas doses de teatralidade para que se perpetue na memória de todos, a sua fama de artista. A história lhe foi favorável por quase dois milênios. Até que outro bufão histriônico tentasse desbancá-lo no papel de louco assassino. Desta vez, no palco da carnificina, os judeus são os coadjuvantes.

Tu és minha lenda



 
Eu era um  príncipe, agora vês em mim um monstro. Tu enxergas um monstro?  Eu sou apenas a projeção de ti mesmo.  Tu, sim, que pareces ter tanto medo deste ser repelente que te habita. Eu sou parte de ti, agora. Aquele que veio de longe para preencher tua alma, antes vazia de motivações.
Preciso do teu corpo pela tua capacidade de sofrer as dores que proporciono. Busca em ti mesmo, se estiveres à caça. O teu rosto é a máscara que ostento, desde que passei a viver do infortúnio dos humanos. O teu andar encurvado e o teu sorriso macabro, são sinais de aceitação.
Olha-te no espelho e verás a mim. Em tua face, a transfiguração do medo, do ódio e do pecado. Acabou-se a inocência. É por trás do teu reflexo que me mantenho à espreita. Tu bem o sabes e é ali o nosso encontro.
Quando saímos às ruas, para saciar nossas fomes, eu me alimento através de tuas presas. Se te distancias, eu te dou a proximidade. Eu imortal, respiro o cheiro de morte que vem de ti. A dor de tuas vítimas, refletida em teus olhos se transforma em mim, em puro prazer por este sofrimento que causei.
A minha presença é necessária, já não vives mais sem mim e também não morres mais. Eu estou aqui contigo e subsistiremos na imortalidade, por infindáveis dias, espalhando maldade, ódios e guerras. Até que reste apenas tu e eu, porque vivemos o mesmo pesadelo, do qual é impossível acordar.

Retrato cru(el) de Brasília


De réguas e linhas se fez. Era anônima e se fez concreta, riscada em desenho geométrico. Construída para realizar os sonhos de um povo sofrido. O chão ferido, cortado por máquinas, moldado em argamassas. Os pés do povo - calcados na lama - e as mãos e as máquinas plantaram o asfalto, cortaram em eixos, desenharam em linhas - retas e curvas - de réguas e compassos. As tesourinhas, agora, recortam o trânsito, atravessado por cruzamentos. Cruzes horizontais em uma metrópole que cresce na verticalidade. Um chão de promessas. Que se ergue em vigas, em cimento e cristal. O aço que sobe do asfalto, também desenha um traçado gigantesco. Erguem-se palácios, em planaltos e alvoradas. Pilares e colunas que sobem ao céu, querendo alcançar as estrelas, talvez assemelhar-se aos deuses, quem sabe imitar os anjos. Um sonho irrealizado de um povo sofrido. Quem, lá do alto, olha a cidade, ofusca a visão. Entre as linhas retas e curvas, a vida se desenha toda torta. É a ambiguidade do sonho do humano que quer ser Deus.


Vício


Ainda é cedo e Camilo sente-se seco. – Maldita! Desgraç... –  Os resmungos grudam-se entre a língua e o céu da boca. Remói as cinzas que restaram dos retratos queimados. Fragmentos ainda pairam no ar e um pedaço pousa na manga da camisa. Ao virar o rosto para o lado, a cabeça pende pesadamente. Entre as bordas chamuscadas, consegue identificar meio sorriso e as dobrinhas do canto da boca da esposa. Ergue a mão direita para retirá-lo. Os tremores fazem-na balançar, na tentativa inútil de expulsar aquela pálida imagem-fantasma. A outra mão tateia em busca da única foto que restou inteira, pai, mãe e filhinho no colo. Um tempo feliz. A mão vai além, em direção à garrafa de aguardente. Longe demais. Obriga-o a esticar-se para agarrá-la e trazê-la para si. Ela esbarra no copo vazio. O tilintar do vidro é um tétrico brinde à sua derrota. Tenta colocar em pé, primeiro a garrafa, depois o copo. O esforço é extremo para seus gestos trêmulos e mais uma vez a cabeça despenca. Passa a língua pelos lábios sedentos e assim mesmo, debruçado sobre a mesa, leva a garrafa à boca. Arranca a rolha com os dentes e toma um gole profundo. Depois outro. Melhor. Consegue ficar ereto. Quer ver o quanto ainda resta do precioso conteúdo da garrafa. Seus olhos, naquele momento, perpassam a transparência do vidro e se projetam para os olhos do menino, postado à sua frente. Não mais aquele bebê da fotografia. Agora ali, uma miniatura de si mesmo. Uma presença recriminadora, a imagem da sua própria culpa. O julgamento transparece por trás dos cílios espessos. O silêncio acusador, insolente, que diz do vício, que culpa por todas as desgraças. O desprezo retratado pelo olhar longo e acusador. – Eu não aguento mais! – tenta justificar-se. O garoto vira-lhe as costas, sem dizer palavra alguma. Camilo ergue a garrafa mais uma vez, os lábios sequiosos se abrem, a garganta espera pelo líquido sedoso. Os dedos se abrem e o vidro se espatifa no piso. O líquido apaga as cinzas e a garganta emite um uivo de dor e desespero.