sábado, 5 de janeiro de 2013

Vício


Ainda é cedo e Camilo sente-se seco. – Maldita! Desgraç... –  Os resmungos grudam-se entre a língua e o céu da boca. Remói as cinzas que restaram dos retratos queimados. Fragmentos ainda pairam no ar e um pedaço pousa na manga da camisa. Ao virar o rosto para o lado, a cabeça pende pesadamente. Entre as bordas chamuscadas, consegue identificar meio sorriso e as dobrinhas do canto da boca da esposa. Ergue a mão direita para retirá-lo. Os tremores fazem-na balançar, na tentativa inútil de expulsar aquela pálida imagem-fantasma. A outra mão tateia em busca da única foto que restou inteira, pai, mãe e filhinho no colo. Um tempo feliz. A mão vai além, em direção à garrafa de aguardente. Longe demais. Obriga-o a esticar-se para agarrá-la e trazê-la para si. Ela esbarra no copo vazio. O tilintar do vidro é um tétrico brinde à sua derrota. Tenta colocar em pé, primeiro a garrafa, depois o copo. O esforço é extremo para seus gestos trêmulos e mais uma vez a cabeça despenca. Passa a língua pelos lábios sedentos e assim mesmo, debruçado sobre a mesa, leva a garrafa à boca. Arranca a rolha com os dentes e toma um gole profundo. Depois outro. Melhor. Consegue ficar ereto. Quer ver o quanto ainda resta do precioso conteúdo da garrafa. Seus olhos, naquele momento, perpassam a transparência do vidro e se projetam para os olhos do menino, postado à sua frente. Não mais aquele bebê da fotografia. Agora ali, uma miniatura de si mesmo. Uma presença recriminadora, a imagem da sua própria culpa. O julgamento transparece por trás dos cílios espessos. O silêncio acusador, insolente, que diz do vício, que culpa por todas as desgraças. O desprezo retratado pelo olhar longo e acusador. – Eu não aguento mais! – tenta justificar-se. O garoto vira-lhe as costas, sem dizer palavra alguma. Camilo ergue a garrafa mais uma vez, os lábios sequiosos se abrem, a garganta espera pelo líquido sedoso. Os dedos se abrem e o vidro se espatifa no piso. O líquido apaga as cinzas e a garganta emite um uivo de dor e desespero.

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