domingo, 18 de setembro de 2011

A ÚLTIMA VIAGEM




               Jorge parou seu táxi em frente ao imponente casarão, ladeado por outras casas antigas. Naquele momento a rua estava deserta e ele apertou a buzina para avisar que já havia chegado, mas nada de aparecer alguém de dentro da casa. Ele decidiu esperar apenas mais alguns minutos. Depois de buzinar mais duas vezes, preparava-se para dar a partida, quando ouviu um barulho dentro do casarão. Era barulho de coisas sendo arrastadas pelo chão, então desceu do carro, a fim de ajudar seu futuro passageiro.

Surgiu na porta um senhor em idade avançada, segurando uma bengala em uma mão e na outra arrastando, com alguma dificuldade, uma pequena mala. Jorge, como era de hábito, apressou-se em acorrer ao encontro do velhinho e teve a oportunidade de contemplar o interior da casa, com poucos móveis, todos cobertos com panos, as mesas e estantes completamente vazias de qualquer objeto. Ajudou o velho senhor a trancar a porta, encaminhando-se para o automóvel e ajudando o passageiro a se acomodar no assento traseiro.

— Boa tarde, senhor! — lembrou-se, apenas agora, de cumprimentar. — Para onde vamos? Aeroporto? — perguntou, já postando-se ao volante. — Vejo que vai viajar...

— Meu nome é Antônio Fernandes e meu destino é o Lar dos Idosos, aqui na cidade mesmo, sabe onde fica? – a voz saiu surpreendentemente firme, apesar da aparência frágil.

— Certamente, senhor. Mas posso saber por que vai se mudar para o asilo, se tem uma casa tão bonita? — Jorge sempre fora assim, as palavras saiam por impulso, quando se interessava por algum assunto.

— Eu sou um velho solitário e meu médico disse que tenho pouco tempo de vida. Estou viúvo há muitos anos, desde que minhas três filhas eram pequenas. Agora, duas estão casadas e a caçula morreu. Se não se importa, podemos partir e, se não for abusar de sua boa vontade, gostaria de pedir que circule um pouco pela cidade antes de me deixar no meu destino. O valor da corrida o senhor me cobre ao chegarmos.

— Não se preocupe com isso, por favor! — retirando o taxímetro do painel, Jorge disse que seu táxi estava disponível pelo tempo e distäncia que seu passageiro fosse necessitar.

Ao passarem pelo rio, através da ponte, puderam ver os dejetos que desciam por seu leito e o lixo acumulado em suas margens. O velho senhor começou a lembrar e contou para o motorista, os momentos passados ali, pescando e banhando-se com as filhas, ainda crianças, num tempo em que não havia poluição, apenas águas límpidas, com margens convidativas para piqueniques e brincadeiras.

— Naqueles dias, eu ainda esbanjava juventude, levava uma vida simples e sem grandes preocupações. E minhas meninas pareciam tão amáveis entre elas e comigo! Ah, se eu pudesse voltar no tempo... — continuou falando com expressão serena.

Foram para o centro da cidade, cada trajeto despertava lembranças que o velho passageiro relatava com emoção. Ao passarem em frente à Igreja Matriz, o velho contou do dia de seu casamento, ali realizado, lembrando com saudade de sua amada esposa, que há tantos anos morrera. Na velha praça, o relato foi das festas, dos namoros, dos encontros entre as famílias, as crianças brincando sob os olhares orgulhosos e cuidadosos de seus pais. Em frente à Câmara Municipal, lembrou das comendas que recebeu ao longo da vida, disse que estava em processo de votação a mudança do nome da principal avenida de cidade, pois queriam rebatizá-la com seu nome. Acrescentou sorrindo, agora com um bom humor contagiante, que provavelmente isso só seria aprovado depois de sua morte.

— Sabia que tem gente que deseja minha morte? — a expressão bem humorada deu lugar a um sorriso triste.

— É sério, senhor Antônio? O senhor tem inimigos?

— Tenho sim, o senhor nâo vai acreditar, mas meus inimigos fazem parte da minha própria família. São minhas filhas e meus genros.

Já estava escurecendo e neste momento passavam em frente a uma instituição financeira, um prédio com estrutura moderna, enorme, na maior parte dos andares, as luzes estavam acesas.

— Eles devem estar lá, conspirando sobre como irão me derrubar de uma vez por todas.

— Eles quem? — Jorge perguntou e sem querer, duvidou um pouco da sanidade mental daquele homem, que agora olhava para cima. Estacionou o carro, prevendo que mais confidências seriam relatadas ali.

— A minha filha mais velha e o esposo. A outra está proibida por eles de entrar aí assim como eu, que fui dono deste banco. Mas a minha filha do meio já teve o seu tempo de comando na instituição, até ser destituída pela mais velha. É sempre assim, elas se revezam no poder, uma sempre derruba a outra por meio de algum golpe. Foi assim que fizeram comigo. Conseguiram provar que eu estava louco e assim se apossaram de tudo que eu tenho. Às vezes acredito que estou louco mesmo. Minha loucura tem origem na culpa. Deixei-me levar pela ilusão de que era amado pelas minhas filhas mais velhas e menosprezei o amor dedicado e incondicional de minha menina caçula. E agora ela está morta. Eles a mataram. Sinto remorsos terríveis por nao ter acreditado que ela só queria me proteger da ganância das irmãs e seus maridos. Mesmo tendo sido expulsa de nossa casa, ela sempre procurou demonstrar o quanto me amava. Por conta disso, renunciou à parte que lhe cabia na empresa, mas mesmo assim, ela foi vítima de uma conspiração que a levou à morte.

— O senhor tem certeza disso que está dizendo? — Jorge custava a acreditar que uma história tão sórdida pudesse estar se desenvolvendo em torno daquele homem, de aspecto delicado e gentil.

— Tenho sim! Até agora eles sempre conseguiram refutar todas as provas. Mas encaminhei aos meus advogados uma quantia respeitável em dinheiro, contratei detetives particulares para tentarem descobrir tudo. As investigações estão avançadas e logo os culpados poderão ser punidos.

O velho homem continuou seu relato a partir da morte da filha mais nova, evitando detalhes tão dolorosos, passando a retratar sua condição de estorvo para as outras duas, sempre na tentativa de faze-lo maluco, ficando um tempo na companhia de uma, outro tempo morando com a outra. Ambas mostravam-se intolerantes face a algumas dificuldades de discernimento por parte dele, agiam indiferentes a sua idade avançada, não empreendendo qualquer esforço no sentido de compreender algumas atitudes desconexas do pai.

— Elas me repreendem o tempo todo, deliberadamente, só para me verem sofrer e para que os outros pensem que estou louco, por isso resolvi partir. Prefiro passar o resto de meus dias com estranhos a ter de conviver com minhas malvadas filhas.

Jorge era um motorista que já ouvira muitas histórias de seus passageiros, mas nunca tinha ficado tão emocionado como com o que esteve ouvindo por toda aquela tarde e já adentrando a noite. Cada palavra, cada situação relatada, eram lições de vida, que ele por certo nunca mais esqueceria. Ele ouvia tudo com atenção, demonstrava um interesse genuíno, fazia perguntas, às quais o velho senhor respondia com explicações detalhadas, fazendo Jorge se sentir como se estivesse presenciando tudo ao vivo. Em sua mente perpassavam todas as situações de abandono dos idosos diante do peso que passam a representar quando sua força de trabalho se esvai.

— Estou seguindo um conselho que minha filha deu antes de morrer. Ela dizia que se um dia não pudesse mais me proteger, mesmo que à distância, era para eu me afastar da perversidade das irmãs. É isso que estou fazendo. Espero que no asilo me deixem viver em paz, agora que me jogaram na na sarjeta da existência.

Dando partida no carro, com a autorização do passageiro para que enfim, rumasse até o Lar dos Idosos, eles lá chegaram, vendo na entrada, os enfermeiros que se postaram para ajudar no desembarque, trazendo uma cadeira de rodas. Antes de entrarem pelo grande portão, o velho senhor fez com que se afastassem apenas por alguns momentos e sabendo que o motorista havia retirado o taxímetro, sacou da carteira uma quantia que achava justa estendendo-a para ele.

Jorge foi veemente, dizendo que não custava nada, apesar da insistência do velhinho, de que podia pagar, não importava o valor. Mesmo assim, Jorge recusou o dinheiro, disse apenas que tudo o que vivenciou naquelas horas de viagem pela cidade, valia mais do que uma fortuna. Deram-se então um abraço caloroso, apertaram-se as mãos com respeito e alegria. Jorge, perguntou se podia vir visitar o mais novo hóspede do asilo, no dia seguinte:

— É claro que sim, vou esperá-lo aqui, pode vir quantas vezes quiser, por todo tempo que me resta neste lugar.

Após mais um abraço, com uma cordialidade que não se podia imaginar, como que podia ter surgido em tão pouco tempo de convivência, Jorge se foi dali, prometendo voltar.

Retornou após três dias, na sua primeira hora de folga. Chegando lá, pediu pelo nome do amigo que lá deixara. Já no trajeto entre o portão e a recepção contaram-lhe que o velho havia morrido na noite anterior e que ele morrera tranquilamente. Antes de adormecer, chamou pelo nome da esposa e da filha, como se elas estivessem ali presentes. Logo após, sua vida se apagou.

sábado, 3 de setembro de 2011

Resignação


O complexo está silencioso a esta hora da noite. Mas basta apenas um olhar mais atento para que a imaginação se encarregue do resto. Não é difícil imaginar centenas de prisioneiros em um pavilhão, sofrendo as mais profundas humilhações. O ato aqui relatado se desenrola no complexo montado pelos nazistas nos arredores da cidade. Um ato que se destina a contar uma história de atrocidades.
            O bloco é revestido de tijolos, lembrando vagamente um quartel e abriga todo o terror daqueles dias, em Tessalônica.
Os primeiros passos se ouvem. São passos de uma marcha arrastada, de pés descalços e cansados. Aquele grupo de pessoas tinha sido retirado à força de dentro da igreja de São Demétrio onde havia se refugiado. O momento é o da chegada dos prisioneiros ao campo em que são recebidos e selecionados. Três soldados nazistas acompanham um pequeno grupo que foi separado dos demais. Joseph, Esther, a filha Sara e mais algumas pessoas são levadas aos empurrões para um local enumerado como Pavilhão Dez. É uma visão impressionante, ainda mais quando se observa que há mais crianças entre eles e nem mesmo os pequeninos recebem um tratamento diferente. Todos são empurrados para dentro com violência. As portas são trancadas. Por parte dos presos não há gritos, nem reclamações, apenas alguns gemidos de dor.
      Já dentro do pavilhão, a pequena Sara, uma garota com pouco mais de sete anos, não consegue entender o que está se passando:
─ Papai, o que vai acontecer conosco?
Joseph olha para o alto e responde: ─ Só Elohim é quem sabe, minha filha!
 ─ Acho que Elohim não quer nos ajudar.
Esther intervém: Devemos ser pacientes e não desesperar-nos com o que está sucedendo, porque o único Elohim de Israel obra seus planos à sua maneira e desde seu espaço, que é maior e mais alto que o nosso.
Joseph: É sim, minha menina! Ainda que pareça que não é correto o que está nos acontecendo, devemos lembrar que os caminhos do Todo Poderoso são mais elevados que os nossos. Para dar-nos o que esperamos, o fará em seu tempo e à sua maneira.
      Enfia a mão por baixo do casaco e de lá retira uma boneca que havia escondido dos nazistas. Alcança a boneca para a filha e sorri ao ver o brilho do seu olhar.
      Deita-se no piso frio e estica o braço como a servir de travesseiro para a esposa e a filha.
Joseph: ─ Os outros dormem. Vamos tentar, nós também, pelo menos um pouco.
       Às primeiras luzes do amanhecer as portas se abrem e se pode contemplar as condições sanitárias desumanas nas quais passaram a noite. Os prisioneiros são trazidos para fora, enfileirados e levados em direção a outra porta. Entram ali e depois de algum tempo, quando saem, parecem seguir todos um mesmo padrão. Vestem o mesmo uniforme, cabeça raspada, a maioria já tem os olhos fundos, magros. Encaram-se uns aos outros com expressão apavorada, própria de quem sabe que a morte está próxima. Mesmo em silêncio, seus olhos parecem gritar por socorro.
      Passam pelo local dos fuzilamentos, onde há corpos caídos, após terem sido atingidos por disparos mortais. A sensação de terror é inevitável. 
      Totalmente imersos nesse clima de horror, são conduzidos até a construção que abriga a câmara de gás e o crematório. Lá dentro deve haver mais de uma centena de outros judeus, pois agora sim, ouvem-se seus gritos.
      Do lado de fora, dois soldados nazistas conversam, enquanto um deles pega uma boneca que restou caída no chão.
─ Coisa boa, esse gás ziclon-b! São trezentos mortos, de uma só vez!
      Lá dentro, os gritos já haviam cessado por completo.
      O outro olha para o crematório com expressão sádica e complementa: ─ Trezentos judeus mortos! Seus corpos agora reduzidos a cinzas... Este é um dia para nunca mais esquecer! Com que orgulho contarei esta história para meus netos!
      Ao fundo ainda ouvem-se risadas de outros soldados da SS. Eles falam alto, sobre jogos, bebidas e mulheres. Aos poucos, tudo vai ficando escuro. Até não se ver mais nada. Também, nada mais se ouve. O complexo está silencioso a esta hora...

quinta-feira, 7 de abril de 2011

AS CORES DA VIDA E DA MORTE


       

            Eu preciso descobrir por que tenho as visões. Eu as procuro, as aparições persistem. Por vezes, julgo ter superado, mas logo vem o sobressalto, a sensação de que tudo está acontecendo outra vez. O que aconteceu de tão marcante e terrível a ponto de deixar-me deste jeito? Que estranhas razões são estas que me fazem sentir como se o poder das trevas atuasse sobre mim mesmo, cobrindo meu corpo de arrepios? Meus pensamentos estão em total confusão, alguns resquícios de consciência mostram que preciso trilhar um caminho em busca de lembranças. É um trajeto difícil, doloroso, que eu preciso descobrir. E o melhor jeito de fazer isso é voltar até onde tudo começou.
Quero sair de casa, não suporto ficar aqui. Quero livrar-me da decoração branca do quarto, ao mesmo tempo em que sinto que uma força me mantém aqui mesmo, obcecado, esperando ver o sorriso da boca de Angélica, ouvir o som suave de sua voz dizendo palavras de um amor que eu não valorizei. A imagem que surge é de uma moça vestida de branco, transparecendo na brancura do quarto e que não fala nenhuma palavra, nem tampouco sorri. Fica apenas estática à minha frente, com o rosto cheio de lágrimas. Tento falar com ela, clamar por uma explicação, porém, o momento entre abrir a boca e lançar algum som demora uma eternidade. Minha voz está fortemente presa na garganta e só um gemido se liberta, um gemido que traduz a imensidão da dor e da culpa. Com esforço tento me aproximar, mas a imagem que até há pouco me contemplava, desaparece. Consigo correr para fora da casa, mesmo temendo que as pessoas voltem a dizer que pareço louco. Ou que alguém, que não me veja há muito tempo, pergunte por Angélica. Esgueiro-me pelas ruas, com uma estranha sensação, como se os próprios passos não fossem meus. Nem sequer consigo definir se estou vivendo algo real. Não me sinto mais andando por uma rua iluminada. Agora me vejo correndo entre ervas daninhas de uma floresta sombria. À minha frente, por entre as árvores, como se estivesse fugindo de mim, mas sempre dentro do meu campo de visão, corre o vulto de Angélica...
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            Angélica viu Daniel se aproximando com o buquê de rosas amarelas nas mãos. Eles gostavam de se encontrar naquela praça, passear de mãos dadas pelo jardim que se mantinha sempre florido. A sensação antecipada de que em alguns minutos estaria com seu amado a fez sorrir. Foi ao seu encontro, seus passos mais rápidos que os dele. Afinal, era sempre assim, ela ficava ansiosa para tê-lo junto a si e quando ele estava ali, procurava retardar ao máximo, o momento da despedida.
Quando um perguntava ao outro há quanto tempo estavam namorando, invariavelmente a resposta era: — Desde sempre! — Esta era uma afirmação que prescindia de datas do calendário. Sempre que lembravam de si mesmos, era de um na presença do outro. As  brincadeiras da primeira infância, sempre juntos, sobre os olhares das mães de ambos, embora às vezes se escondessem. Na mesma escola, em todos os anos da vida escolar, até o último ano do Ensino Médio, não davam chances para aproximações de pretendentes. Quando crianças, andavam sempre de mãos dadas e mais crescidos, ficavam trocando beijos e carícias pelos corredores do colégio, como se não houvesse mais nada nem ninguém. Agora, o período escolar havia terminado e Angélica ainda esperava convencer Daniel a entrarem para a mesma universidade, embora soubesse que ele pretendia abandonar os estudos e montar uma banda de rock.
— Meu amor! Que saudade! Estou tão feliz em ver você! Trouxe flores, temos algo em especial para comemorar? Você sumiu depois que as aulas acabaram. — Ela era assim, as palavras, os beijos e os abraços se sucediam e se misturavam, toda vez que se encontravam. Ele sempre tinha que recomendar-lhe que tivesse mais calma, mas no olhar transparecia o quanto gostava daquelas atitudes tão características de uma personalidade esfuziante. Nesse dia, no entanto, ele a afastou de um jeito que Angélica desconhecia.
— Querida, preciso conversar com você. Eu juro que pensei muito antes de vir ao seu encontro, mas agora eu decidi. Quero terminar nosso namoro — Desviou o olhar, como se estivesse constrangido com a situação.
— O quê? Você quer terminar? Quando foi que descobriu que não me ama mais? Foi nesses poucos dias em que deixamos de nos ver? Seu sumiço foi proposital, então... — ela parecia não acreditar no que acabara de ouvir.
— Não é isso, eu ainda a amo! Durante toda a vida eu me senti comprometido com você, mas agora eu quero ficar sozinho. Nós só temos 17 anos... Eu me sinto muito novo para compromissos. Eu preciso de um tempo. Quero me dedicar a minha banda, quero viajar, quero.... — Angélica impediu que ele continuasse.
—Por favor, pare com isso! Como pode dizer que não quer mais? Eu adoro você! Não vou conseguir viver sem você — Ela tentava segurar suas mãos, mas ele a empurrava.
— Querida, fique com as flores... Por tudo que vivemos até hoje. Só que a partir de agora não nos veremos mais. Não quero ficar envolvido com ninguém, você sabe, por causa da música... — Daniel não podia mais fixar o olhar triste de Angélica, então, virou-se para se afastar.
— Espere, Daniel... Quero lhe dizer mais uma coisa, antes de você me deixar. Eu sempre vou amar você! Se um dia precisar de mim, eu estarei aqui, meu amor... — Dizendo isso, ela virou-lhe as costas, como a permitir que ele se fosse. E realmente, ao se voltar, ele já tinha desaparecido.

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Nos primeiros meses que se seguiram, Daniel ocupou seu tempo com os ensaios da banda e não demorou muito para que sentisse o desejo de se apaixonar outra vez. Um desejo se reacendia toda vez que via Diana, a irmã de Tiago, baixista da banda. Ela era muito atraente, embora fosse totalmente diferente de Angélica. Era uma morena vistosa, com seu corpo cheio de curvas, o que fez com que em pouco tempo Daniel se mostrasse alucinado por ela. Nem a enfermidade do pai impedia que se encontrassem no apartamento dela, todos os dias. Numa noite, tinham acabado de fazer amor, quando Daniel recebeu uma ligação da mãe dizendo que seu pai estava morrendo. Rumou ao hospital ainda a tempo de se despedir do pai, que em seguida, deu seu último suspiro. Este foi um momento difícil para Daniel, assim como os outros que se sucederam, o funeral, o enterro, o desconsolo de sua mãe. Angélica estava presente no cemitério, mas manteve-se distante, apenas observando, com a expressão triste. A única aproximação foi para a mãe de Daniel. As duas trocaram um abraço demorado, entre lágrimas.
Diana não foi ao enterro, mas à noite Daniel foi encontrá-la no apartamento. Chorou ao abraçá-la, dizendo que precisava dela. Nesse momento ela se soltou para pegar o celular de Daniel, que estava ali próximo, na mesinha do canto. Diana era uma mulher ciumenta; sempre que podia, olhava o celular dele para ver quem tinha ligado ou mandado mensagem. Ela o questionava, mas ele sempre afirmava que não havia motivos para desconfiança. Nesta noite, mais uma vez ela não resistiu e na frente dele abriu para ver a mensagem que havia acabado de chegar. Leu em voz alta: — “Preciso me encontrar com você. Venha me ver na nossa prainha. Te espero sábado, às 9h. Angélica.”  Enquanto lia, Diana ia ficando cada vez mais irritada. Leu o nome de Angélica, deu uma gargalhada irônica e o empurrou para longe, com o rosto vermelho de raiva, por mais que Daniel tentasse acalmá-la.
— Então vocês continuam se encontrando, não é, seu cachorro maldito! É mentira que me ama. Você mentiu também quando disse que a esqueceu... Eu odeio você! Saia daqui! — Foi empurrando Daniel para fora do apartamento e quando ele estava na porta ela a fechou com um estrondo. Depois daquela noite, nunca mais se viram.
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A cor do mar e as ondas revoltas me perturbam ainda mais. É uma cor escura, a água parece pegajosa como um lodo, as ondas vêm pesadas, o barulho é horrível, até o piar das gaivotas é aterrador. Estou desesperado, a dor no peito aperta e oprime. Sempre sentia uma espécie de êxtase quando via o mar. Agora o êxtase está bloqueado pela dor. Ouço meu próprio grito, sem notar que vem de minha garganta. O grito é apenas um nome. Eu clamo por Angélica. Das ondas barrentas ela surge e vem ao meu encontro. Continuo gritando seu nome, mas a intensidade diminui aos poucos, até que a voz se torna apenas um gemido, que traduz a dor e a culpa, a dor da culpa.
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Mesmo num sábado, a praia encontrava-se deserta. Aquela prainha nunca tinha sido muito freqüentada. Talvez fosse por isso que eles gostavam de ir para lá. A cor da água sempre encantara a ambos. A suavidade das ondas convidava para brincadeiras. Boiavam de mãos dadas, um desafiando o outro, para ver quem se mantinha em cima da água por mais tempo. Ao recordar a felicidade ali desfrutada, Angélica sentia-se deprimida, mas hoje tinha que manter-se firme. Sentia que Daniel precisava dela — notou no olhar triste, no dia do enterro do pai. Quando viu Daniel surgir ao longe, lá no início da prainha, Angélica suspirou e foi ao seu encontro, seus passos mais rápidos que os dele. Afinal, sempre fora assim...
            — Estava pensando que você não vinha — Disse quando estavam próximos o bastante.
            — Eu quero saber o que você quer — A reposta foi cortante e ríspida. Ele a culpava por Diana tê-lo abandonado.
            — Daniel, eu sei que você está sofrendo com a morte de seu pai. Eu gosto de você desde sempre, e sempre estarei ao seu lado se precisar.
            — Eu não preciso de você. Se foi para isso que veio... — Angélica ouve Daniel dizer isso já se afastando para ir embora.
            — Daniel, eu sei que você não está bem! Eu só quero ajudar; me diga o que eu posso fazer por você.
            — Quer mesmo que eu diga o que pode fazer por mim? Quer fazer algo por mim? Então faça o que eu digo... Morra!
            Daniel se afasta sem olhar para trás. Não vê a dor no rosto de Angélica, se desfazendo em lágrimas. Mas olha para o mar. Estranhamente, a cor do mar se modificou. O mar está escuro, assim como o céu. O vento é forte e ele tem que se esforçar para seguir em frente. As ondas estão terrivelmente fortes, com um barulho ensurdecedor.

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Há três dias estou trancado em meu quarto, só abro quando minha mãe bate para trazer comida, mas não permito sequer que ela abra as cortinas. Naquela manhã, ela não tinha uma bandeja na mão. Apenas sofrimento no olhar.
— Daniel, A Angélica morreu afogada! Acabaram de encontrar seu corpo. Acham que ela cometeu suicídio, pois nadava bem.

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Seis meses se passaram e ainda procuro as visões de Angélica. Mas as cores ao meu redor me dizem para continuar. Agora eu tenho consciência de que ela se foi, não porque eu houvesse planejado. Sabia que tinha exagerado nas palavras. Eu precisava pegar suas mãos nas minhas e pedir perdão, mas ela não tinha mãos, era apenas um vulto branco. Só reconhecia seu rosto, suas lágrimas...
            Olho para o mar. E mais uma vez chamo por Angélica. Desta vez não é um grito e também não é um gemido. O chamado está escrito em uma folha de papel. Eu componho uma canção e na canção digo que não duvidei do amor. E peço perdão. De um envelope retiro uma foto que tiramos juntos e que só agora mandei revelar. Ela está tão igual que parece irreal.  Prometo que vou tentar, vou vencer... Ela responde que está em paz.

http://www.kboing.com.br/cine/1-1021407/

Eu digo Olá, você diz Adeus

           Nunca gostei de despedidas. Na verdade, nunca aprendi a dizer adeus. Eu adoro dizer “Olá, como vai?” Sou louca pelos abraços das chegadas, odeio os acenos das despedidas. Bem feito para mim, agora tenho que aprender a viver sem você.
Liverpool Waterfront by Rachel Doyle
http://www.uk-photos.co.uk/liverpool.htm

            Juro que estou tentando, mas é uma tarefa difícil, voltar todos os dias ao nosso apartamentinho e não mais encontrar você.
            Nosso apê já não me abriga. Como posso entrar na cozinha se o seu cheiro ainda ainda está lá dentro? Era ali que fazíamos juntos tantas macarronadas. Você sempre querendo testar um  molho exótico, que na hora de provar a gente sempre adorava.
            Ainda procuro sua guitarra, que você largava, recostada na janela lateral.
            Na sala, a única distração é sentar diante do computador novo, já que o seu você levou e me fez ir correndo comprar outro. É nele que temos longas conversas intercontinentais.
            Vou para a sacada e contemplo o mar. Será que é o mesmo mar, que à distancia compartilhamos? Aquele pontinho na linha que se forma entre o mar e o céu, não será um barco trazendo você de volta? A visão do porto da minha cidade acende um desejo de embarcar em um navio que esteja de partida, para desembarcar no porto de Liverpool.
            Eu queria dizer “Olá”, você preferiu dizer “Adeus”. Toda vez que ligo o computador, vou direto para o arquivo de músicas, fico ouvindo a única música que toca, toca, toca... 
“You Say Goodbye and I Say Hello, 
Hello, Hello
I Don't Know Why you Say Goodbye
I Say Hello, hello hello
I don't know why you say goodbye
I say hello..."
            Ouvir esta música repetidamente me dá a nítida visão de sua presença em Liverpool, que para mim é o outro lado do mundo e para onde você se foi, em busca do sonho que não acabou, mas também carregado pelas promessas de um futuro melhor. “Querido, fica!” “Não posso ficar.” “Fica sim! Fica aqui comigo!” “Não!! Eu tenho que ir, meu amor! Você sabe que não posso deixar passar esta oportunidade... Um dia, quem sabe, você vem também, vamos fazer viagens pela Europa toda... Vamos nos separar apenas por pouco tempo, meu bem...”  
You Say Yes (I Say Yes)
I Say No (But I May Mean No, I can Stay Till It's Time To Go)
You Say Stop
And I Say Go Go Go
            Certo, entendi suas explicações, você se foi por um bem maior, por uma vida melhor, pelo seu amor à música. Eu decorei, eu entendi! Mas é que dói. Explicações podem confortar, mas não podem curar a dor da ausência. Agora, apenas o silêncio fala por você.
             Do alto da sacada, onde seus braços tantas vezes me envolveram, para proteger-me do vento, eu  me lembro das promessas que fizemos antes do check-in: “não chorar, se cuidar, usar filtro solar, mandar e-mail todos os dias”... Eu tento fazer a minha parte, mas como conter o choro, se você não está aqui para passar hidratante nos meus ombros que deixei arderem ao sol? E você, será que tem lembrado de se cuidar? Quanto aos e-mails, às vezes parece que tem esquecido de responder.
            O último que recebi, há um mês atrás, me deu a impressão de que, não sei não, mas parece que o berço do Beatles está encantando você, muito mais que eu, que a nossa cidade, nosso país. Estou sentindo como se estivesse na ponta de um cabo-de-guerra e as forças já começassem a me faltar. Os relatos que você faz da cidade, famosa por sua música, onde diz ter encontrado uma gama de culturas diferentes, retratam uma cidade que se encontra impregnada por seu patrimônio marítimo, sua história, sua música pop, definidora de uma época, que você quer por força reviver.  
            Volto da sacada, retorno para dentro do apartamento, ainda falta entrar no quarto, agora já na penumbra de uma tarde que termina. Sobre o criado-mudo o quadrinho com sua foto. É em direção a ele que eu vou... aperto seu sorriso em meu peito e digo que ainda acredito em você, ainda confio no nosso amor, eu só queria mais notícias, queria que as taxas de desemprego na Inglaterra aumentassem, queria que você voltasse....
            Da sala ainda vêm os acordes da música, os últimos, antes de novamente recomeçarem. Abraçada ao sorriso da sua foto, meu passos começam a ficar mais cadenciados, movem-se guiados pela música. Agora, somos nós dois rodopiando.
 Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a,
Hay La, Hey Hello-a...


terça-feira, 5 de abril de 2011

Conto de uma Londres vitoriana

             Ao longe, o som da música mistura-se ao burburinho das vozes, normal a esta hora do dia, sob as últimas luzes do entardecer. A praça Red Lion Square como sempre, está repleta de gente, a maioria imigrantes, vindos das mais diversas regiões do planeta.
            William se aproxima do local de onde vem a música, próximo a uma fogueira, já antecipadamente acesa para esperar a noite que logo se avizinha. Sente-se atraído por uma força estranha que não apenas o crepitar da fogueira, nem o cheiro da fumaça, muito menos os acordes dos violinos. O que desperta sua atenção e perpassa por todos seus órgãos sensoriais é o vislumbre ainda ao longe de um vestido vermelho, é o som do leve farfalhar da roupa e dos passos em dança, descalços no chão da praça, é o cheiro doce, forte, feminino, que emana daquela mulher, que agora, mais próximo, ele identifica como uma cigana linda.
            Ela também o vê no momento em que ele estaca à sua frente, parecendo petrificado com seus encantos. O olhar que ela lhe lança, numa simples fração de segundos, antes de mais um rodopio, é um olhar luminoso e profundo, como se portasse todos os mistérios guardados por seus antepassados desde que se deslocaram da India, um olhar que retrata histórias de um povo gitano, nômades que pisaram muitas estradas, antes de ali chegarem.
            Aquele olhar trocado por ambos foi o único lapso de aproximação nesse dia, porque ao fim da música, quando William esperava que ela permanecesse por ali, aquecendo-se na fogueira, na companhia dos outros, ela simplesmente saiu correndo, sem sequer olhar para trás.
             Nos dias que se seguiram, porém, ela invariavelmente estava lá e ele também. Agora  por mais um motivo, ver a cigana dançar, mas além disso sua frequência naquele lugar de grande circulação de pessoas, era na tentativa de vender seus quadros. Ele ainda esperava o dia de ser reconhecido como um grande pintor e precisava vender suas obras de arte nas ruas, onde ansiava que as pessoas lançassem sua atenção para seus quadros e não para si mesmo. Ele tinha medo que o identificassem como o conde William D’Leroy, pois apesar de pertencer à nobreza e de, nos tempos de criança e início da juventude ter frequentado os salões de festas na presença da rainha Vitória, agora estava falido, quase não participava mais da vida social nos palácios  e precisava do dinheiro que vinha da venda de suas telas para sobreviver.
            A cigana Dahra era uma mulher livre, jovem e independente. Embora inocente, portava uma soberba em curvas sensuais e provocantes. Os longos cabelos negros às vezes eram trançados, amarrados com uma flor, da mesma cor do vestido. Adorava dançar e rodopiar e, apesar de seu povo ser por séculos, considerado inferior, ela emanava sua força enquanto dançava, sentia que seu poder de sedução era capaz de encantar um homem, capaz de dominar a fraqueza deste, quando estava diante dela. E para o conde William, Dahra transmitia, não um erotismo vulgar, mas uma grande força de transmutação, a possibilidade de se libertar e se contrapor às situações de abuso e de desrespeito. Foi por isso que ele sentiu desejo de tê-la para si.
            ─ Quero fazer um quadro seu! – disse a ela, na primeira vez que lhe dirigiu a palavra.  
            ─ Quer que eu pose para você? - perguntou Dahra, espantada. 
            ─ Apenas quero que dance para mim, enquanto eu pinto. – ele respondeu sorrindo. 
            E foi assim que a partir daquele dia, William sentia que ela dançava especialmente para ele. Sentindo-se cada vez mais cativo de seus encantos desejava profundamente também poder conquistá-la. Mas ao fim da dança ela sempre ia embora correndo, enquanto ele a olhava tristemente perguntando-se se ela voltaria no dia seguinte. Só que agora, antes de desaparecer, ela olhava para trás lançava-lhe um sorriso e depois se ia, rindo, rindo, como se saísse de um jogo. 
            Com o passar do tempo ela começou a demorar-se mais na companhia dele. Passaram a ter longas conversas sobre suas vidas, seus planos, seus sonhos. Ela descobriu que ele era casado e que era infeliz. William lhe contou que vivia com a esposa, num casamento sem amor, que a mulher mais exigia do que se doava, retratando-a quase como uma megera, incapaz de um gesto de carinho. Sentiram então a cumplicidade aumentando entre ambos, um desejo de aproximar os corpos, como se estivessem ávidos de calor, sedentos de carinho, famintos de um beijo, que, no momento que aconteceu, saciou todas as suas vontades, fazendo-os se esquecerem de tudo que havia ao seu redor. 
            A partir do primeiro beijo, muitos outros se sucederam todos os dias, as palavras sussurradas, as carícias interrompidas, por não terem um lugar em que pudessem se encontrar sem a indiscrição dos olhares alheios, tudo isso fazia Dahra imaginar que ele era mais que um simples homem, mais que um conde, para ela, ele passou a ser idealizado como um príncipe. Passou a sonhar com ele todas as noites. Seus sonhos eram a extensão do amor que sentia, já que nos sonhos ela podia esquecer que ele era um homem casado, podia senti-lo totalmente seu, podia sentir suas carícias intermináveis, que só acabavam mesmo, quando ela acordava, toda suada e respirando com dificuldade. Só conseguia voltar ao normal depois de sair da tenda, no acampamento onde morava nos arredores da cidade. Saía sob a brisa fria, deitava-se no solo e ficava mirando as estrelas, pedindo que fossem atraídas para si todas as energias do universo, para que pudesse suportar o amor que sentia, sem poder gritar para que o mundo inteiro pudesse ouvir.  
            Na semana seguinte, William pediu que ela o acompanhasse ao seu castelo, dizendo que a esposa estava viajando e que se demoraria a voltar.
─ Vamos para minha casa, meu amor! Lá poderemos ficar juntinhos e mais à vontade.
             Se fosse em outros tempos ou se fosse outro homem que a convidasse, Dahra jamais aceitaria, sua altivez, seu orgulho e amor-próprio não permitiriam, porém agora ela estava pela primeira vez, subjugada pelo amor ao seu príncipe, era capaz de segui-lo para qualquer lugar. 
            Chegando ao palacete, Dahra pode perceber já do lado de fora que o mesmo necessitava de reformas, parecia que fazia muito tempo que os jardins não eram cuidados, o chão não era varrido, tudo precisava de limpeza, de ordem.
            Mal abriram a porta o que Dahra viu lá dentro foi uma mulher, ainda jovem e bonita, da qual surpreendentemente, William se aproximou, deu um beijo em seu rosto e apresentou: 
            ─ Dahra, esta é minha esposa. Catherine, esta é Dahra, a moça de quem lhe falei. 
           ─ O quê? – Dahra podia sentir o chão sumindo sob seus pés, as pernas tremendo, o corpo todo fraquejando. – Como assim? Ela sabe... de mim? Você falou de mim para ela? E por acaso contou a ela das coisas falou dela para mim? 
            Mas quem respondeu foi a própria mulher demonstrando indiferença a respeito do que Dahra dissera sobre William ter falado coisas ruins da esposa. 
            ─ Sim querida, William,me falou de você. Me pediu se podia trazê-la para casa, para morar conosco... Você pode trabalhar como empregada, ajudar nos serviços de limpeza e na cozinha. Quando eu soube que você era uma cigana eu pensei em não aceitar, mas William, como sempre, me convenceu. Eu faço tudo por ele... Posso permitir até que ele divida nossa cama com você...  
            William estava parado, entre as duas. Dahra e Catherine o encaravam como se fossem  respectivamente, Lilith e Eva, uma o oposto da outra: Lilith desafia a ordem e paga um preço por isso. Eva, moldada sob o modelo patriarcal, é cordata e submissa. Lilith já foi confundida como uma deusa, mas também já foi chamada de demônio, quando esteve na pele de uma serpente. Qual dessas forças fez Dahra sair correndo dali, não se sabe. Ao perceber todo mal que havia causado, um mal sem reparação, sem hipótese de perdão, William ainda correu atrás dela, chamando-a pelo nome, gritando que não sabia que a esposa estaria em casa, tentando fazê-la voltar. 
            Sem sequer ouvir o que ele dizia, Dahra corria e, enquanto corria, proferia palavras indecifráveis, que saiam de sua alma ancestral e brotavam de sua garganta numa voz grave, irreconhecível. Ela estava lançando um sortilégio sobre aquele homem, sem saber se surtiria efeito. Nunca tinha usado desses artifícios contra ninguém, mas também nunca ninguém a tinha humilhado tanto. Ela se corroía por dentro, imaginando os dois rindo dela e se divertindo às suas custas.  
            Como tantas vezes Dahra o fez, mais uma vez, antes de desaparecer na escuridão, virou-se para olhar para trás e o que viu a fez tremer de terror. Seu amado príncipe não corria mais atrás dela. Havia se transformado num espantalho, horrendo, esfarrapado, fincado no chão da praça. Depois deste último olhar, a cigana sse pôs novamente a correr e se foi, rindo, rindo, como se saísse de um jogo... sujo.