domingo, 18 de setembro de 2011

A ÚLTIMA VIAGEM




               Jorge parou seu táxi em frente ao imponente casarão, ladeado por outras casas antigas. Naquele momento a rua estava deserta e ele apertou a buzina para avisar que já havia chegado, mas nada de aparecer alguém de dentro da casa. Ele decidiu esperar apenas mais alguns minutos. Depois de buzinar mais duas vezes, preparava-se para dar a partida, quando ouviu um barulho dentro do casarão. Era barulho de coisas sendo arrastadas pelo chão, então desceu do carro, a fim de ajudar seu futuro passageiro.

Surgiu na porta um senhor em idade avançada, segurando uma bengala em uma mão e na outra arrastando, com alguma dificuldade, uma pequena mala. Jorge, como era de hábito, apressou-se em acorrer ao encontro do velhinho e teve a oportunidade de contemplar o interior da casa, com poucos móveis, todos cobertos com panos, as mesas e estantes completamente vazias de qualquer objeto. Ajudou o velho senhor a trancar a porta, encaminhando-se para o automóvel e ajudando o passageiro a se acomodar no assento traseiro.

— Boa tarde, senhor! — lembrou-se, apenas agora, de cumprimentar. — Para onde vamos? Aeroporto? — perguntou, já postando-se ao volante. — Vejo que vai viajar...

— Meu nome é Antônio Fernandes e meu destino é o Lar dos Idosos, aqui na cidade mesmo, sabe onde fica? – a voz saiu surpreendentemente firme, apesar da aparência frágil.

— Certamente, senhor. Mas posso saber por que vai se mudar para o asilo, se tem uma casa tão bonita? — Jorge sempre fora assim, as palavras saiam por impulso, quando se interessava por algum assunto.

— Eu sou um velho solitário e meu médico disse que tenho pouco tempo de vida. Estou viúvo há muitos anos, desde que minhas três filhas eram pequenas. Agora, duas estão casadas e a caçula morreu. Se não se importa, podemos partir e, se não for abusar de sua boa vontade, gostaria de pedir que circule um pouco pela cidade antes de me deixar no meu destino. O valor da corrida o senhor me cobre ao chegarmos.

— Não se preocupe com isso, por favor! — retirando o taxímetro do painel, Jorge disse que seu táxi estava disponível pelo tempo e distäncia que seu passageiro fosse necessitar.

Ao passarem pelo rio, através da ponte, puderam ver os dejetos que desciam por seu leito e o lixo acumulado em suas margens. O velho senhor começou a lembrar e contou para o motorista, os momentos passados ali, pescando e banhando-se com as filhas, ainda crianças, num tempo em que não havia poluição, apenas águas límpidas, com margens convidativas para piqueniques e brincadeiras.

— Naqueles dias, eu ainda esbanjava juventude, levava uma vida simples e sem grandes preocupações. E minhas meninas pareciam tão amáveis entre elas e comigo! Ah, se eu pudesse voltar no tempo... — continuou falando com expressão serena.

Foram para o centro da cidade, cada trajeto despertava lembranças que o velho passageiro relatava com emoção. Ao passarem em frente à Igreja Matriz, o velho contou do dia de seu casamento, ali realizado, lembrando com saudade de sua amada esposa, que há tantos anos morrera. Na velha praça, o relato foi das festas, dos namoros, dos encontros entre as famílias, as crianças brincando sob os olhares orgulhosos e cuidadosos de seus pais. Em frente à Câmara Municipal, lembrou das comendas que recebeu ao longo da vida, disse que estava em processo de votação a mudança do nome da principal avenida de cidade, pois queriam rebatizá-la com seu nome. Acrescentou sorrindo, agora com um bom humor contagiante, que provavelmente isso só seria aprovado depois de sua morte.

— Sabia que tem gente que deseja minha morte? — a expressão bem humorada deu lugar a um sorriso triste.

— É sério, senhor Antônio? O senhor tem inimigos?

— Tenho sim, o senhor nâo vai acreditar, mas meus inimigos fazem parte da minha própria família. São minhas filhas e meus genros.

Já estava escurecendo e neste momento passavam em frente a uma instituição financeira, um prédio com estrutura moderna, enorme, na maior parte dos andares, as luzes estavam acesas.

— Eles devem estar lá, conspirando sobre como irão me derrubar de uma vez por todas.

— Eles quem? — Jorge perguntou e sem querer, duvidou um pouco da sanidade mental daquele homem, que agora olhava para cima. Estacionou o carro, prevendo que mais confidências seriam relatadas ali.

— A minha filha mais velha e o esposo. A outra está proibida por eles de entrar aí assim como eu, que fui dono deste banco. Mas a minha filha do meio já teve o seu tempo de comando na instituição, até ser destituída pela mais velha. É sempre assim, elas se revezam no poder, uma sempre derruba a outra por meio de algum golpe. Foi assim que fizeram comigo. Conseguiram provar que eu estava louco e assim se apossaram de tudo que eu tenho. Às vezes acredito que estou louco mesmo. Minha loucura tem origem na culpa. Deixei-me levar pela ilusão de que era amado pelas minhas filhas mais velhas e menosprezei o amor dedicado e incondicional de minha menina caçula. E agora ela está morta. Eles a mataram. Sinto remorsos terríveis por nao ter acreditado que ela só queria me proteger da ganância das irmãs e seus maridos. Mesmo tendo sido expulsa de nossa casa, ela sempre procurou demonstrar o quanto me amava. Por conta disso, renunciou à parte que lhe cabia na empresa, mas mesmo assim, ela foi vítima de uma conspiração que a levou à morte.

— O senhor tem certeza disso que está dizendo? — Jorge custava a acreditar que uma história tão sórdida pudesse estar se desenvolvendo em torno daquele homem, de aspecto delicado e gentil.

— Tenho sim! Até agora eles sempre conseguiram refutar todas as provas. Mas encaminhei aos meus advogados uma quantia respeitável em dinheiro, contratei detetives particulares para tentarem descobrir tudo. As investigações estão avançadas e logo os culpados poderão ser punidos.

O velho homem continuou seu relato a partir da morte da filha mais nova, evitando detalhes tão dolorosos, passando a retratar sua condição de estorvo para as outras duas, sempre na tentativa de faze-lo maluco, ficando um tempo na companhia de uma, outro tempo morando com a outra. Ambas mostravam-se intolerantes face a algumas dificuldades de discernimento por parte dele, agiam indiferentes a sua idade avançada, não empreendendo qualquer esforço no sentido de compreender algumas atitudes desconexas do pai.

— Elas me repreendem o tempo todo, deliberadamente, só para me verem sofrer e para que os outros pensem que estou louco, por isso resolvi partir. Prefiro passar o resto de meus dias com estranhos a ter de conviver com minhas malvadas filhas.

Jorge era um motorista que já ouvira muitas histórias de seus passageiros, mas nunca tinha ficado tão emocionado como com o que esteve ouvindo por toda aquela tarde e já adentrando a noite. Cada palavra, cada situação relatada, eram lições de vida, que ele por certo nunca mais esqueceria. Ele ouvia tudo com atenção, demonstrava um interesse genuíno, fazia perguntas, às quais o velho senhor respondia com explicações detalhadas, fazendo Jorge se sentir como se estivesse presenciando tudo ao vivo. Em sua mente perpassavam todas as situações de abandono dos idosos diante do peso que passam a representar quando sua força de trabalho se esvai.

— Estou seguindo um conselho que minha filha deu antes de morrer. Ela dizia que se um dia não pudesse mais me proteger, mesmo que à distância, era para eu me afastar da perversidade das irmãs. É isso que estou fazendo. Espero que no asilo me deixem viver em paz, agora que me jogaram na na sarjeta da existência.

Dando partida no carro, com a autorização do passageiro para que enfim, rumasse até o Lar dos Idosos, eles lá chegaram, vendo na entrada, os enfermeiros que se postaram para ajudar no desembarque, trazendo uma cadeira de rodas. Antes de entrarem pelo grande portão, o velho senhor fez com que se afastassem apenas por alguns momentos e sabendo que o motorista havia retirado o taxímetro, sacou da carteira uma quantia que achava justa estendendo-a para ele.

Jorge foi veemente, dizendo que não custava nada, apesar da insistência do velhinho, de que podia pagar, não importava o valor. Mesmo assim, Jorge recusou o dinheiro, disse apenas que tudo o que vivenciou naquelas horas de viagem pela cidade, valia mais do que uma fortuna. Deram-se então um abraço caloroso, apertaram-se as mãos com respeito e alegria. Jorge, perguntou se podia vir visitar o mais novo hóspede do asilo, no dia seguinte:

— É claro que sim, vou esperá-lo aqui, pode vir quantas vezes quiser, por todo tempo que me resta neste lugar.

Após mais um abraço, com uma cordialidade que não se podia imaginar, como que podia ter surgido em tão pouco tempo de convivência, Jorge se foi dali, prometendo voltar.

Retornou após três dias, na sua primeira hora de folga. Chegando lá, pediu pelo nome do amigo que lá deixara. Já no trajeto entre o portão e a recepção contaram-lhe que o velho havia morrido na noite anterior e que ele morrera tranquilamente. Antes de adormecer, chamou pelo nome da esposa e da filha, como se elas estivessem ali presentes. Logo após, sua vida se apagou.

Um comentário:

  1. Parabéns pela postagem amiga. É um ótimo texto, que demonstra a sua capacidade e experiência na expressão das idéias...

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