quinta-feira, 7 de abril de 2011

AS CORES DA VIDA E DA MORTE


       

            Eu preciso descobrir por que tenho as visões. Eu as procuro, as aparições persistem. Por vezes, julgo ter superado, mas logo vem o sobressalto, a sensação de que tudo está acontecendo outra vez. O que aconteceu de tão marcante e terrível a ponto de deixar-me deste jeito? Que estranhas razões são estas que me fazem sentir como se o poder das trevas atuasse sobre mim mesmo, cobrindo meu corpo de arrepios? Meus pensamentos estão em total confusão, alguns resquícios de consciência mostram que preciso trilhar um caminho em busca de lembranças. É um trajeto difícil, doloroso, que eu preciso descobrir. E o melhor jeito de fazer isso é voltar até onde tudo começou.
Quero sair de casa, não suporto ficar aqui. Quero livrar-me da decoração branca do quarto, ao mesmo tempo em que sinto que uma força me mantém aqui mesmo, obcecado, esperando ver o sorriso da boca de Angélica, ouvir o som suave de sua voz dizendo palavras de um amor que eu não valorizei. A imagem que surge é de uma moça vestida de branco, transparecendo na brancura do quarto e que não fala nenhuma palavra, nem tampouco sorri. Fica apenas estática à minha frente, com o rosto cheio de lágrimas. Tento falar com ela, clamar por uma explicação, porém, o momento entre abrir a boca e lançar algum som demora uma eternidade. Minha voz está fortemente presa na garganta e só um gemido se liberta, um gemido que traduz a imensidão da dor e da culpa. Com esforço tento me aproximar, mas a imagem que até há pouco me contemplava, desaparece. Consigo correr para fora da casa, mesmo temendo que as pessoas voltem a dizer que pareço louco. Ou que alguém, que não me veja há muito tempo, pergunte por Angélica. Esgueiro-me pelas ruas, com uma estranha sensação, como se os próprios passos não fossem meus. Nem sequer consigo definir se estou vivendo algo real. Não me sinto mais andando por uma rua iluminada. Agora me vejo correndo entre ervas daninhas de uma floresta sombria. À minha frente, por entre as árvores, como se estivesse fugindo de mim, mas sempre dentro do meu campo de visão, corre o vulto de Angélica...
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            Angélica viu Daniel se aproximando com o buquê de rosas amarelas nas mãos. Eles gostavam de se encontrar naquela praça, passear de mãos dadas pelo jardim que se mantinha sempre florido. A sensação antecipada de que em alguns minutos estaria com seu amado a fez sorrir. Foi ao seu encontro, seus passos mais rápidos que os dele. Afinal, era sempre assim, ela ficava ansiosa para tê-lo junto a si e quando ele estava ali, procurava retardar ao máximo, o momento da despedida.
Quando um perguntava ao outro há quanto tempo estavam namorando, invariavelmente a resposta era: — Desde sempre! — Esta era uma afirmação que prescindia de datas do calendário. Sempre que lembravam de si mesmos, era de um na presença do outro. As  brincadeiras da primeira infância, sempre juntos, sobre os olhares das mães de ambos, embora às vezes se escondessem. Na mesma escola, em todos os anos da vida escolar, até o último ano do Ensino Médio, não davam chances para aproximações de pretendentes. Quando crianças, andavam sempre de mãos dadas e mais crescidos, ficavam trocando beijos e carícias pelos corredores do colégio, como se não houvesse mais nada nem ninguém. Agora, o período escolar havia terminado e Angélica ainda esperava convencer Daniel a entrarem para a mesma universidade, embora soubesse que ele pretendia abandonar os estudos e montar uma banda de rock.
— Meu amor! Que saudade! Estou tão feliz em ver você! Trouxe flores, temos algo em especial para comemorar? Você sumiu depois que as aulas acabaram. — Ela era assim, as palavras, os beijos e os abraços se sucediam e se misturavam, toda vez que se encontravam. Ele sempre tinha que recomendar-lhe que tivesse mais calma, mas no olhar transparecia o quanto gostava daquelas atitudes tão características de uma personalidade esfuziante. Nesse dia, no entanto, ele a afastou de um jeito que Angélica desconhecia.
— Querida, preciso conversar com você. Eu juro que pensei muito antes de vir ao seu encontro, mas agora eu decidi. Quero terminar nosso namoro — Desviou o olhar, como se estivesse constrangido com a situação.
— O quê? Você quer terminar? Quando foi que descobriu que não me ama mais? Foi nesses poucos dias em que deixamos de nos ver? Seu sumiço foi proposital, então... — ela parecia não acreditar no que acabara de ouvir.
— Não é isso, eu ainda a amo! Durante toda a vida eu me senti comprometido com você, mas agora eu quero ficar sozinho. Nós só temos 17 anos... Eu me sinto muito novo para compromissos. Eu preciso de um tempo. Quero me dedicar a minha banda, quero viajar, quero.... — Angélica impediu que ele continuasse.
—Por favor, pare com isso! Como pode dizer que não quer mais? Eu adoro você! Não vou conseguir viver sem você — Ela tentava segurar suas mãos, mas ele a empurrava.
— Querida, fique com as flores... Por tudo que vivemos até hoje. Só que a partir de agora não nos veremos mais. Não quero ficar envolvido com ninguém, você sabe, por causa da música... — Daniel não podia mais fixar o olhar triste de Angélica, então, virou-se para se afastar.
— Espere, Daniel... Quero lhe dizer mais uma coisa, antes de você me deixar. Eu sempre vou amar você! Se um dia precisar de mim, eu estarei aqui, meu amor... — Dizendo isso, ela virou-lhe as costas, como a permitir que ele se fosse. E realmente, ao se voltar, ele já tinha desaparecido.

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Nos primeiros meses que se seguiram, Daniel ocupou seu tempo com os ensaios da banda e não demorou muito para que sentisse o desejo de se apaixonar outra vez. Um desejo se reacendia toda vez que via Diana, a irmã de Tiago, baixista da banda. Ela era muito atraente, embora fosse totalmente diferente de Angélica. Era uma morena vistosa, com seu corpo cheio de curvas, o que fez com que em pouco tempo Daniel se mostrasse alucinado por ela. Nem a enfermidade do pai impedia que se encontrassem no apartamento dela, todos os dias. Numa noite, tinham acabado de fazer amor, quando Daniel recebeu uma ligação da mãe dizendo que seu pai estava morrendo. Rumou ao hospital ainda a tempo de se despedir do pai, que em seguida, deu seu último suspiro. Este foi um momento difícil para Daniel, assim como os outros que se sucederam, o funeral, o enterro, o desconsolo de sua mãe. Angélica estava presente no cemitério, mas manteve-se distante, apenas observando, com a expressão triste. A única aproximação foi para a mãe de Daniel. As duas trocaram um abraço demorado, entre lágrimas.
Diana não foi ao enterro, mas à noite Daniel foi encontrá-la no apartamento. Chorou ao abraçá-la, dizendo que precisava dela. Nesse momento ela se soltou para pegar o celular de Daniel, que estava ali próximo, na mesinha do canto. Diana era uma mulher ciumenta; sempre que podia, olhava o celular dele para ver quem tinha ligado ou mandado mensagem. Ela o questionava, mas ele sempre afirmava que não havia motivos para desconfiança. Nesta noite, mais uma vez ela não resistiu e na frente dele abriu para ver a mensagem que havia acabado de chegar. Leu em voz alta: — “Preciso me encontrar com você. Venha me ver na nossa prainha. Te espero sábado, às 9h. Angélica.”  Enquanto lia, Diana ia ficando cada vez mais irritada. Leu o nome de Angélica, deu uma gargalhada irônica e o empurrou para longe, com o rosto vermelho de raiva, por mais que Daniel tentasse acalmá-la.
— Então vocês continuam se encontrando, não é, seu cachorro maldito! É mentira que me ama. Você mentiu também quando disse que a esqueceu... Eu odeio você! Saia daqui! — Foi empurrando Daniel para fora do apartamento e quando ele estava na porta ela a fechou com um estrondo. Depois daquela noite, nunca mais se viram.
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A cor do mar e as ondas revoltas me perturbam ainda mais. É uma cor escura, a água parece pegajosa como um lodo, as ondas vêm pesadas, o barulho é horrível, até o piar das gaivotas é aterrador. Estou desesperado, a dor no peito aperta e oprime. Sempre sentia uma espécie de êxtase quando via o mar. Agora o êxtase está bloqueado pela dor. Ouço meu próprio grito, sem notar que vem de minha garganta. O grito é apenas um nome. Eu clamo por Angélica. Das ondas barrentas ela surge e vem ao meu encontro. Continuo gritando seu nome, mas a intensidade diminui aos poucos, até que a voz se torna apenas um gemido, que traduz a dor e a culpa, a dor da culpa.
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Mesmo num sábado, a praia encontrava-se deserta. Aquela prainha nunca tinha sido muito freqüentada. Talvez fosse por isso que eles gostavam de ir para lá. A cor da água sempre encantara a ambos. A suavidade das ondas convidava para brincadeiras. Boiavam de mãos dadas, um desafiando o outro, para ver quem se mantinha em cima da água por mais tempo. Ao recordar a felicidade ali desfrutada, Angélica sentia-se deprimida, mas hoje tinha que manter-se firme. Sentia que Daniel precisava dela — notou no olhar triste, no dia do enterro do pai. Quando viu Daniel surgir ao longe, lá no início da prainha, Angélica suspirou e foi ao seu encontro, seus passos mais rápidos que os dele. Afinal, sempre fora assim...
            — Estava pensando que você não vinha — Disse quando estavam próximos o bastante.
            — Eu quero saber o que você quer — A reposta foi cortante e ríspida. Ele a culpava por Diana tê-lo abandonado.
            — Daniel, eu sei que você está sofrendo com a morte de seu pai. Eu gosto de você desde sempre, e sempre estarei ao seu lado se precisar.
            — Eu não preciso de você. Se foi para isso que veio... — Angélica ouve Daniel dizer isso já se afastando para ir embora.
            — Daniel, eu sei que você não está bem! Eu só quero ajudar; me diga o que eu posso fazer por você.
            — Quer mesmo que eu diga o que pode fazer por mim? Quer fazer algo por mim? Então faça o que eu digo... Morra!
            Daniel se afasta sem olhar para trás. Não vê a dor no rosto de Angélica, se desfazendo em lágrimas. Mas olha para o mar. Estranhamente, a cor do mar se modificou. O mar está escuro, assim como o céu. O vento é forte e ele tem que se esforçar para seguir em frente. As ondas estão terrivelmente fortes, com um barulho ensurdecedor.

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Há três dias estou trancado em meu quarto, só abro quando minha mãe bate para trazer comida, mas não permito sequer que ela abra as cortinas. Naquela manhã, ela não tinha uma bandeja na mão. Apenas sofrimento no olhar.
— Daniel, A Angélica morreu afogada! Acabaram de encontrar seu corpo. Acham que ela cometeu suicídio, pois nadava bem.

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Seis meses se passaram e ainda procuro as visões de Angélica. Mas as cores ao meu redor me dizem para continuar. Agora eu tenho consciência de que ela se foi, não porque eu houvesse planejado. Sabia que tinha exagerado nas palavras. Eu precisava pegar suas mãos nas minhas e pedir perdão, mas ela não tinha mãos, era apenas um vulto branco. Só reconhecia seu rosto, suas lágrimas...
            Olho para o mar. E mais uma vez chamo por Angélica. Desta vez não é um grito e também não é um gemido. O chamado está escrito em uma folha de papel. Eu componho uma canção e na canção digo que não duvidei do amor. E peço perdão. De um envelope retiro uma foto que tiramos juntos e que só agora mandei revelar. Ela está tão igual que parece irreal.  Prometo que vou tentar, vou vencer... Ela responde que está em paz.

http://www.kboing.com.br/cine/1-1021407/

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