terça-feira, 5 de abril de 2011

Conto de uma Londres vitoriana

             Ao longe, o som da música mistura-se ao burburinho das vozes, normal a esta hora do dia, sob as últimas luzes do entardecer. A praça Red Lion Square como sempre, está repleta de gente, a maioria imigrantes, vindos das mais diversas regiões do planeta.
            William se aproxima do local de onde vem a música, próximo a uma fogueira, já antecipadamente acesa para esperar a noite que logo se avizinha. Sente-se atraído por uma força estranha que não apenas o crepitar da fogueira, nem o cheiro da fumaça, muito menos os acordes dos violinos. O que desperta sua atenção e perpassa por todos seus órgãos sensoriais é o vislumbre ainda ao longe de um vestido vermelho, é o som do leve farfalhar da roupa e dos passos em dança, descalços no chão da praça, é o cheiro doce, forte, feminino, que emana daquela mulher, que agora, mais próximo, ele identifica como uma cigana linda.
            Ela também o vê no momento em que ele estaca à sua frente, parecendo petrificado com seus encantos. O olhar que ela lhe lança, numa simples fração de segundos, antes de mais um rodopio, é um olhar luminoso e profundo, como se portasse todos os mistérios guardados por seus antepassados desde que se deslocaram da India, um olhar que retrata histórias de um povo gitano, nômades que pisaram muitas estradas, antes de ali chegarem.
            Aquele olhar trocado por ambos foi o único lapso de aproximação nesse dia, porque ao fim da música, quando William esperava que ela permanecesse por ali, aquecendo-se na fogueira, na companhia dos outros, ela simplesmente saiu correndo, sem sequer olhar para trás.
             Nos dias que se seguiram, porém, ela invariavelmente estava lá e ele também. Agora  por mais um motivo, ver a cigana dançar, mas além disso sua frequência naquele lugar de grande circulação de pessoas, era na tentativa de vender seus quadros. Ele ainda esperava o dia de ser reconhecido como um grande pintor e precisava vender suas obras de arte nas ruas, onde ansiava que as pessoas lançassem sua atenção para seus quadros e não para si mesmo. Ele tinha medo que o identificassem como o conde William D’Leroy, pois apesar de pertencer à nobreza e de, nos tempos de criança e início da juventude ter frequentado os salões de festas na presença da rainha Vitória, agora estava falido, quase não participava mais da vida social nos palácios  e precisava do dinheiro que vinha da venda de suas telas para sobreviver.
            A cigana Dahra era uma mulher livre, jovem e independente. Embora inocente, portava uma soberba em curvas sensuais e provocantes. Os longos cabelos negros às vezes eram trançados, amarrados com uma flor, da mesma cor do vestido. Adorava dançar e rodopiar e, apesar de seu povo ser por séculos, considerado inferior, ela emanava sua força enquanto dançava, sentia que seu poder de sedução era capaz de encantar um homem, capaz de dominar a fraqueza deste, quando estava diante dela. E para o conde William, Dahra transmitia, não um erotismo vulgar, mas uma grande força de transmutação, a possibilidade de se libertar e se contrapor às situações de abuso e de desrespeito. Foi por isso que ele sentiu desejo de tê-la para si.
            ─ Quero fazer um quadro seu! – disse a ela, na primeira vez que lhe dirigiu a palavra.  
            ─ Quer que eu pose para você? - perguntou Dahra, espantada. 
            ─ Apenas quero que dance para mim, enquanto eu pinto. – ele respondeu sorrindo. 
            E foi assim que a partir daquele dia, William sentia que ela dançava especialmente para ele. Sentindo-se cada vez mais cativo de seus encantos desejava profundamente também poder conquistá-la. Mas ao fim da dança ela sempre ia embora correndo, enquanto ele a olhava tristemente perguntando-se se ela voltaria no dia seguinte. Só que agora, antes de desaparecer, ela olhava para trás lançava-lhe um sorriso e depois se ia, rindo, rindo, como se saísse de um jogo. 
            Com o passar do tempo ela começou a demorar-se mais na companhia dele. Passaram a ter longas conversas sobre suas vidas, seus planos, seus sonhos. Ela descobriu que ele era casado e que era infeliz. William lhe contou que vivia com a esposa, num casamento sem amor, que a mulher mais exigia do que se doava, retratando-a quase como uma megera, incapaz de um gesto de carinho. Sentiram então a cumplicidade aumentando entre ambos, um desejo de aproximar os corpos, como se estivessem ávidos de calor, sedentos de carinho, famintos de um beijo, que, no momento que aconteceu, saciou todas as suas vontades, fazendo-os se esquecerem de tudo que havia ao seu redor. 
            A partir do primeiro beijo, muitos outros se sucederam todos os dias, as palavras sussurradas, as carícias interrompidas, por não terem um lugar em que pudessem se encontrar sem a indiscrição dos olhares alheios, tudo isso fazia Dahra imaginar que ele era mais que um simples homem, mais que um conde, para ela, ele passou a ser idealizado como um príncipe. Passou a sonhar com ele todas as noites. Seus sonhos eram a extensão do amor que sentia, já que nos sonhos ela podia esquecer que ele era um homem casado, podia senti-lo totalmente seu, podia sentir suas carícias intermináveis, que só acabavam mesmo, quando ela acordava, toda suada e respirando com dificuldade. Só conseguia voltar ao normal depois de sair da tenda, no acampamento onde morava nos arredores da cidade. Saía sob a brisa fria, deitava-se no solo e ficava mirando as estrelas, pedindo que fossem atraídas para si todas as energias do universo, para que pudesse suportar o amor que sentia, sem poder gritar para que o mundo inteiro pudesse ouvir.  
            Na semana seguinte, William pediu que ela o acompanhasse ao seu castelo, dizendo que a esposa estava viajando e que se demoraria a voltar.
─ Vamos para minha casa, meu amor! Lá poderemos ficar juntinhos e mais à vontade.
             Se fosse em outros tempos ou se fosse outro homem que a convidasse, Dahra jamais aceitaria, sua altivez, seu orgulho e amor-próprio não permitiriam, porém agora ela estava pela primeira vez, subjugada pelo amor ao seu príncipe, era capaz de segui-lo para qualquer lugar. 
            Chegando ao palacete, Dahra pode perceber já do lado de fora que o mesmo necessitava de reformas, parecia que fazia muito tempo que os jardins não eram cuidados, o chão não era varrido, tudo precisava de limpeza, de ordem.
            Mal abriram a porta o que Dahra viu lá dentro foi uma mulher, ainda jovem e bonita, da qual surpreendentemente, William se aproximou, deu um beijo em seu rosto e apresentou: 
            ─ Dahra, esta é minha esposa. Catherine, esta é Dahra, a moça de quem lhe falei. 
           ─ O quê? – Dahra podia sentir o chão sumindo sob seus pés, as pernas tremendo, o corpo todo fraquejando. – Como assim? Ela sabe... de mim? Você falou de mim para ela? E por acaso contou a ela das coisas falou dela para mim? 
            Mas quem respondeu foi a própria mulher demonstrando indiferença a respeito do que Dahra dissera sobre William ter falado coisas ruins da esposa. 
            ─ Sim querida, William,me falou de você. Me pediu se podia trazê-la para casa, para morar conosco... Você pode trabalhar como empregada, ajudar nos serviços de limpeza e na cozinha. Quando eu soube que você era uma cigana eu pensei em não aceitar, mas William, como sempre, me convenceu. Eu faço tudo por ele... Posso permitir até que ele divida nossa cama com você...  
            William estava parado, entre as duas. Dahra e Catherine o encaravam como se fossem  respectivamente, Lilith e Eva, uma o oposto da outra: Lilith desafia a ordem e paga um preço por isso. Eva, moldada sob o modelo patriarcal, é cordata e submissa. Lilith já foi confundida como uma deusa, mas também já foi chamada de demônio, quando esteve na pele de uma serpente. Qual dessas forças fez Dahra sair correndo dali, não se sabe. Ao perceber todo mal que havia causado, um mal sem reparação, sem hipótese de perdão, William ainda correu atrás dela, chamando-a pelo nome, gritando que não sabia que a esposa estaria em casa, tentando fazê-la voltar. 
            Sem sequer ouvir o que ele dizia, Dahra corria e, enquanto corria, proferia palavras indecifráveis, que saiam de sua alma ancestral e brotavam de sua garganta numa voz grave, irreconhecível. Ela estava lançando um sortilégio sobre aquele homem, sem saber se surtiria efeito. Nunca tinha usado desses artifícios contra ninguém, mas também nunca ninguém a tinha humilhado tanto. Ela se corroía por dentro, imaginando os dois rindo dela e se divertindo às suas custas.  
            Como tantas vezes Dahra o fez, mais uma vez, antes de desaparecer na escuridão, virou-se para olhar para trás e o que viu a fez tremer de terror. Seu amado príncipe não corria mais atrás dela. Havia se transformado num espantalho, horrendo, esfarrapado, fincado no chão da praça. Depois deste último olhar, a cigana sse pôs novamente a correr e se foi, rindo, rindo, como se saísse de um jogo... sujo.

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